quarta-feira, 25 de maio de 2011

QUANDO OS FANTASMAS SE ENCONTRAM



Ele fora despejado da cama e do quarto. Recebera transferência compulsória para a sala onde um sofá-cama seria seu novo reduto de repouso noturno. O nascimento de mais uma mulher na família ocasionara isso já que a casa era pequena.
Ficara, portanto, com um espaço só seu apenas à noite depois que todos já estivessem recolhidos em seus aposentos. Aí sim, o velho e pesado móvel transformava-se em sua cama após ser aberto com um barulho nada discreto.
Todos os dias por volta das 7h tinha que levantar, quisesse ou não, precisasse ou não, pois já era dia e “seu espaço” tornava-se lugar comum a toda a família em seus afazeres diários. Sua “carruagem” voltava a ser abóbora, ou melhor, voltava a ser o velho sofá de cor abóbora.
Da sala, de construção antiga, saiam dois corredores. Um bem escuro que levava à cozinha e ao quintal, locais que aos olhos de uma criança eram sombrios e assustadores nas longas noites. Apenas uma cortina o separava da sala. 
Um segundo corredor, no sentido oposto ao outro, levava aos quartos e à entrada da casa.
            A TV estrategicamente colocada num canto da sala, quando desligada, permitia observar através do reflexo da tela, embora sem detalhes, todo esse corredor e também a porta de entrada da residência.
Ninguém até então havia se preocupado com a imaginação criativa e apavorante (põe apavorante nisso!) daquele garoto.  Ao contrário, a despeito do desconforto, às vezes ele até recebia broncas já que se aproveitando das poucas horas nas quais reinava no pedaço,  o menino sorrateiramente ia à cozinha, pegava lata de leite condensado, fazia uns furinhos e deixava aquele sabor extremamente adocicado descer goela abaixo. Quem nunca fez isso na vida?
Na sequência, para evitar que vissem sua arte, guardava a “arma do crime” temporariamente dentro do sofá-cama esperando para desfazer-se dela na manhã seguinte, coisa que costumeiramente se esquecia de fazer.  Uma vez a bronca foi homérica pois a mãe encontrou de uma só vez, 3 latas vazias.
Naquela noite em especial seus temores estavam mais aflorados que o normal e nem se aventurou a percorrer o corredor escuro para fazer saques na cozinha.
Corroborando para isso, o vento começou a brincar com as cortinas que em seus movimentos de vai-e-vem, formavam vultos e caretas que zombavam do menino, alem de deixarem exposta a escuridão plena que reinava no corredor e cozinha.
            O assoalho velho também entrou no clima e deu seus estalidos característicos.
E foi assim, num cenário tipicamente hitchcokiano formado pela penumbra da sala, gemidos do vento e cortinas esvoaçantes, que ele deitou. Como sempre, fosse inverno ou verão, enrolou-se todo no lençol deixando somente parte do rosto para fora afinal, respirar era preciso. Aos poucos o sono foi lhe vencendo e acabou dormindo.
A temperatura alta do dia seguida de uma queda brusca à noite, talvez tenha sido o fator desencadeador de toda a confusão que se seguiu.
As tábuas largas do velho assoalho num processo de contração passaram a ranger com maior intensidade naquela noite e acabaram por acordar o pai que dormia no quarto da frente. Cismado com os ruídos resolveu levantar e pé ante pé foi saindo do quarto para espiar no corredor. Como o barulho persistisse, ele andava um passo e parava tentando confirmar se realmente o barulho era do assoalho estralando ou de algum ladrão andando no forro de madeira da casa.
Ainda enrolado em seu lençol branco o garoto também acordou e de olhos arregalados viu apavorado através do reflexo na tela da TV, um vulto vindo vagarosamente (e para ele, perigosamente) pelo corredor em direção à sala.  A cada passo lento e silencioso do vulto, o coração do menino acelerava e ele esperando pelo pior começou  a erguer-se ficando pronto para fugir em disparada daquele fantasma que se aproximava.
O pai que estava mais preocupado em checar o barulho, nem se lembrou que o filho dormia no sofá-cama. Para a sala foi se dirigindo bem devagar pois munido de toda sua grande coragem, pretendia pegar o pretenso ladrão totalmente desavisado.
Já em pé e ainda enrolado no lençol, o garoto sentiu o coração quase sair pela boca e entrou em pânico assim que o vulto surgiu de vez na semiescuridão da sala. No desespero para fugir, deu um pinote e num pique só, saiu gritando e correndo em direção à escuridão da cozinha fazendo esvoaçar o lençol branco que o cobria.
O pai que até então estava silente, deu um grito de pavor ao ver um fantasma correndo na sua sala, ao vivo e a cores! Virou rapidamente nos calcanhares e praticamente voou de volta para seu quarto batendo e trancando a porta. Com o susto nem se lembrou que um fantasma que se preze atravessa portas e paredes. Toda sua valentia evaporou num segundo.
A gritaria acordou toda a família que indagava o motivo do escândalo em plena madrugada. Ouvindo a voz da mãe, o garoto começou a voltar devagarzinho para a sala ainda envolto no lençol deixando à mostra somente um par de olhos arregalados.
Foi quando tudo se esclareceu e haja água com açúcar para acalmar os dois fantasmas.
A partir daquela noite as mulheres da família ficaram convictas de quão protegidas estavam pelos dois corajosos homens da casa.

Santos, março de 2011

Ao meu pai (in memorian) e ao Edo, protagonistas desta história.

2 comentários:

  1. Adorei o texto Liginha,cara amiga!!Vc escreve muito bem,proporcionando.nos em seus detalhes,a vivência em nós,leitores,como figurantes de seu conto!!!! Parabéns 👏👏

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  2. Obrigada Maria Eliza!
    São lembranças que me fazem rir ainda hoje, mesmo passado tanto tempo. Obrigada pela visita ao blog e comentário!!

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