quinta-feira, 21 de março de 2013

EXPLORAÇÃO INTERROMPIDA


Sempre despertaram certa curiosidade os comentários que eu fazia a respeito da mania organizacional de meu pai.   Cada fato novo contado era motivo de espanto seguido de muita risada devido aos exageros e invencionices tão particulares a ele.
Brincava inclusive dizendo-lhe que qualquer dia montaria uma exposição e cobraria ingresso para visitação pública.  Ele até achava graça e concordava que às vezes cometia alguns exageros, mas com o passar do tempo somente aprimorava mais e mais suas invenções domésticas.
Tivemos liberdade para observar melhor e mexer em suas coisas, somente após sua partida deste mundo.
Foi assim que certa tarde ao receber a visita de uma amiga, surgiu a ideia de visitarmos o cantinho da casa que ele considerava seu escritório.  Era onde passava a maior parte do tempo, sempre criando suas artes.
Em meio a muitas gargalhadas abríamos os armários, as gavetas, as pastas e em todos os objetos havia algum detalhe curioso.  Ele usava e abusava de anotações caprichosas, sempre com letras de forma feitas com pincel atômico nas cores verde e vermelho (cores de seu time de coração – Velo Clube); usava muito durepox, fitas crepes, carimbos na forma do dedo indicador tanto esquerdo quanto direito apontando para alguma anotação importante, agendas, blocos, bloquinhos e blocões de papel, etc.
Havia até prendedores de madeira para varal com seu nome anotado para não serem misturados aos demais de uso comum.  Isto porque ele tinha o costume de pendurar no varal para secar após o uso, até sua escova de dente.
Como esse escritório ficava no pavimento superior da casa e com porta que se abria para o quintal, resolveu adotar certas medidas de segurança. Quebrou propositadamente o trinco da porta com o objetivo de tornar mais difícil ou até impossibilitar sua abertura por algum visitante indesejado, ou seja, um ladrão.
Feito isso, para evitar que o vento fechasse a porta enquanto estava trabalhando, providenciou uma pedra de calçada portuguesa com um formato que permitia seu perfeito encaixe entre a lateral da porta e o batente. Desta forma a porta ficava travada e era mantida aberta enquanto ele lá se encontrasse.
Um detalhe: para facilitar a exata posição na colocação da pedra, colou sobre um lado dela um pedaço de esparadrapo branco onde escreveu em caprichadas letras de forma – ESTE LADO PARA CIMA.
Distraídas que estávamos bisbilhotando, não percebemos que uma forte corrente de vento começou a circular pelo cômodo. 
Incautas, também não tivemos o cuidado de colocar a tal pedra estratégica no lugar certo.
Foi quando entre uma risada e outra ouvimos um forte barulho.  O vento havia empurrado a porta que se fechou com violência.
Uma troca de olhares assustados foi suficiente para nos entendermos. 
Seria uma represália vinda do além???
Estava decretado o final de nossa alegre exploração. 
Estávamos presas num pequeno espaço no pavimento superior, sem mais ninguém na casa e pior ainda, sem sequer um telefone para pedir ajuda.
Tentamos inicialmente segurar no toco de trinco que havia, mas era impossível sequer abaixá-lo.   Ele nem se movimentava.
Resolvemos analisar com calma a situação e para nossa sorte vimos que havia um pequeno vão no encaixe entre a parte superior da porta e o batente.  Com auxílio de um bastão de madeira colocado nesse vão e com muito esforço feito a quatro mãos, pouco a pouco fomos conseguindo aumentar esse espaço até que passados alguns suados minutos conseguimos abrir a porta.  Alívio amplo, geral e irrestrito.
Coincidência ou não, o fato é que o susto valeu como um aviso e não foi preciso um segundo aviso.  Saímos aos atropelos do escritório.
Estava encerrada a primeira e última exploração às invencionices de meu pai.
Naquele momento, de onde ele estava, com certeza se divertiu às tantas com os apuros das intrusas em seu antigo território.
Manias e temperamento muito autoritário à parte, somente após sua partida tomamos conhecimento de atitudes generosas em relação a terceiros, mas nunca divulgadas por ele nem mesmo aos beneficiados.  Assim era o Sr. Italo Cerri.


Santos, 21 de março de 2013.        
Para Alice Keiko, companheira dessa exploração interrompida.

segunda-feira, 18 de março de 2013

EU VI



Apesar dos anos que já passaram, vez ou outra a cena lhe vem à mente e quando se dá conta, está rindo sozinha.
O cenário era velho conhecido seu – a rua em que morou desde seu nascimento. Sabia bem como era cada pedacinho dela, mas mesmo assim a jovem gostava de ficar admirando-a nos momentos de dolce far niente. Era justamente isso que fazia na manhã daquele domingo ensolarado.
Eis que de repente entre os carros que transitavam, viu surgir bem rente à sarjeta, uma bicicleta vermelha.  Sobre ela, um garoto todo sorridente mantinha os pés apenas apoiados nos pedais.  Apesar da razoável velocidade que desenvolvia, ele não fazia o mínimo esforço pois seu pai que corria na extremidade da calçada, empurrava-o com sua mão esquerda apoiada nas costas do menino, enquanto em sua mão direita, carregava uma louça e uma caixa de jogos.
Vinham embalados e rindo com a brincadeira até que o pai errou um passo. 
Seu pé esquerdo pisou fora da calçada desequilibrando-o.
O tombo que se seguiu foi inevitável e particularmente acrobático.
A caixa de jogos e a louça foram lançadas para o alto.  O jogo era War com grande quantidade de pecinhas coloridas, que subiram muito alto para depois caírem num festival de cores esparramadas pela calçada e asfalto.  A louça não teve melhor sorte e encontrou seu finado dia naquele instante, partindo-se em vários pedaços.
Ajoelhado no chão, atônito e ainda abobalhado pelo tombo, o pai olhou à sua volta para ver se alguém mais além do filho, ria daquela cena. Viu que uma senhora que estava no portão bem em frente não demonstrava nenhuma reação, quer fosse de riso, susto ou mesmo preocupação.  Assim ela permaneceu enquanto ele recolhia pacienciosamente, cada peça do jogo.  Provavelmente a senhora dormia em pé ou algum problema na visão a impediu de curtir a cena desastrada de malabarismo.
Aliviado e concluindo que ninguém além do filho havia testemunhado sua situação vexatória, olhou mais à frente e deparou-se com a jovem em pleno acesso de riso, vendo-o ajoelhado na calçada juntando os pedaços que sobraram da louça (que nem era sua) e catando as “trocentas” peças do War, jogo com o qual, diga-se de passagem, ele detestava brincar.
A performance do pseudo-atleta teve um final triunfal com direito até a malabarismo trapalhão.

Santos, 18 de março de 2013   


Obs: Eu vi e não me esqueço, sr. Edo.