Rio Claro(SP)-década de 1960 - Av. 1, esquina com Rua 6
As responsabilidades de trabalho começaram já na infância, quando ainda cursávamos o então chamado curso primário, hoje, Ensino Fundamental - 1º Ciclo.
No período da manhã íamos ao
“Marcello Schmidt” e à tarde ajudávamos na papelaria da família. Em períodos de férias escolares, cumpríamos
os dois turnos na loja. Obviamente não
éramos remunerados para isso.
Nossas funções eram variadas:
varrer, tirar o pó, abaixar e levantar os toldos de lona (lembro-me que um
deles era bem pesado), arrumar mercadorias nas prateleiras e atender fregueses.
Uma atividade que gostava de
fazer era o balanço nos finais de ano: organizava os materiais e fazia a
contagem dos mesmos, para depois anotar a quantidade no fichário. Dava um trabalhão e era tudo feito
manualmente, pois computadores ainda não existiam.
A arrumação das vitrines também
era algo que fazia com prazer. Inventava diferentes arranjos com as caixas de
lápis de cor, esparramando as 36 cores de maneira a formar figuras
geométricas. Fazia caprichadas pilhas com os cadernos, livros de contabilidade, romances, etc.
Algo que nos deixava um tanto
aborrecidos, era que apesar de mexermos diariamente com materiais bonitos e da
moda, não podíamos tê-los para nosso uso escolar.
Não me esqueço das pequenas caixas
de lápis de cor com 12 unidades, que traziam na frente a imagem do Coliseu
romano. Elas nos acompanharam no curso primário todinho e só tivemos acesso aos
lápis maiores e com duas dúzias, no então chamado ginásio.
O que dizer então dos
cadernos?
Vendíamos os novos modelos espirais
lançados pela Companhia Melhoramentos de Papel, com suas capas quadriculadas
nas cores azul, vermelha e verde, enquanto em nossas bolsas escolares,
carregávamos os antigos cadernos brochuras AVANTE, que traziam nas capas,
escoteiros empunhando a bandeira do Brasil.
Hoje entendemos que com a chegada
de mercadorias mais chamativas, os modelos antigos encalhavam nas prateleiras e
cabia a nós, darmos conta de usá-los. Ainda crianças, achávamos isso uma
injustiça, mas jamais ousamos reclamar.
A despeito destas obrigações e
até mesmo das broncas merecidas (poucas) e não merecidas (muitas), confesso que
até hoje sinto um grande prazer ao entrar em papelarias e livrarias.
Recentemente fiquei um longo tempo passeando entre as prateleiras da Papelaria Kalunga,
observando as últimas novidades.
A visão dos materiais escolares e
o cheiro de papel desencadearam um filme em minha mente e quando me dei conta,
estava sorrindo muito.
Que pena que não encontrei mais
nenhum caderno brochura Avante!
E os livros de romances? Não
esqueço as artimanhas que fazia para lê-los.
Embora não me fosse permitido fazer
isso enquanto trabalhava, comecei a leitura deles de maneira escondida, quando
já estava no curso ginasial, com meus 11 para 12 anos.
Li e reli a coleção toda da então
chamada Biblioteca das Moças, com seus livros de lombos verdes e encadernação
bem simples. Lembro que minha
preferência era pelos romances assinado por M. Delly.
A maior parte dos serviços de rua
ficava a cargo de meu irmão, que com sua bicicleta e o pesado caixote no
bagageiro, fazia entrega de mercadorias.
E idas e vindas aos bancos, então?
Inúmeras (e desnecessárias, diga-se de passagem) por semana!
Às vezes eu também era convocada,
isso mesmo, con-vo-ca-da, a fazer algumas compras para a loja. De uma delas em
especial, não esqueço jamais.
Menina ainda, por volta de 8 ou 9
anos, fui comprar algo na Avenida 1, avenida central de Rio Claro (SP). Serviço realizado, já voltava para casa quando
ao passar pela Avenida 2 na esquina com a Rua 5, vi uma enorme lixeira feita de
aramado, bem na ponta da calçada. Era
nova e recém-instalada. Achei-a bonita e
resolvi inaugurar já que estava ainda vazia.
Decidida, joguei em seu interior
a Nota Fiscal da compra feita (ao menos era essa minha intenção) e segui o
caminho sentindo-me muito importante.
Já na papelaria, entreguei ao meu
pai a compra que trazia em uma das mãos e fui entregar o troco que trazia na
outra mão.
Surpresa! Na outra mão só havia a Nota Fiscal.
Enquanto a bronca já começava,
lembrei-me da lixeira e num átimo deduzi que havia jogado fora o dinheiro do
troco no lugar da tal Nota Fiscal.
Virei rapidamente nos calcanhares
e ainda ouvindo a voz alterada do “pai patrão”, sai em desabalada carreira em
busca dos cruzeiros, hoje, reais. Corri
sem parar vários quarteirões até chegar ao local, já sem fôlego.
O dinheiro estava enroladinho no
fundo da lixeira. Para minha alegria,
ninguém o havia visto ainda.
Tentei alcançá-lo pelos vãos do
arame trançado, mas não consegui.
Tentei então pegar por cima, mas
a lixeira tinha quase a minha altura e nas tentativas de escalá-la, quase cai no
seu interior por diversas vezes.
O funcionário da loja que ficava
na esquina, olhava e mal continha o riso. Com certeza a cena deveria estar hilária, pois
tal qual uma aranha humana, eu mantinha as pernas e um braço agarrados pelo
lado externo e com o tronco abaixado, tentava com o outro braço alcançar o
fundo da lixeira. Um panorama onde a classe e a categoria passavam longe.
Fiquei ali baratinada por alguns instantes com medo de cair de vez dentro da lixeira.
Vendo meu desespero, ele
aproximou-se curioso. Foi quando criei
coragem e pedi que pegasse o dinheiro, explicando tudo que havia ocorrido.
Com os cruzeiros resgatados,
corri novamente para a papelaria, mas agora bem mais aliviada, pois havia me
livrado de belo castigo.
Hoje encontrei na internet esta
foto acima, de Rio Claro antiga, onde uma lixeira aparece em primeiro plano no
canto inferior direito.
Embora não seja no mesmo local,
foi numa lixeira igual a essa onde fiz arriscados malabarismos na infância,
quase caindo de cabeça dentro dela. E
tudo por causa de uns trocados.
Esse mico eu nem contabilizo
dentre outros tantos que protagonizei na vida, pois foi por uma boa causa!
Afinal, eu tinha que prestar
contas ao “pai-patrão”, e prestei!
Santos, 26 de janeiro de 2014 (aniversário da cidade - 468 anos).
Capa do caderno Avante.
Exemplares dos romances de M. Delly na coleção da Biblioteca das Moças.