segunda-feira, 26 de março de 2018

A TRINCA PELUDA





Eles eram grandes.  Muito grandes.
Eram três ao todo e muito bonitos - um preto, um branco e um com pelos castanhos tendendo para o dourado.  Três cães enormes circulando pela casa.
Ainda bem que eram razoavelmente dóceis pois caso contrário jamais alguém entraria lá e se entrasse, com certeza não sairia intacto dado ao tamanho das criaturas.
Bem alimentados e cuidados, vagavam pelos cômodos à procura do lugar mais fresco já que o calor estava insuportável.
Naquele final de semana de pleno verão eles estavam sob os cuidados de uma pessoa com a qual não tinham muito contato, mas nem por isso criaram problemas, ao contrário, ficaram deitados a maior parte do tempo.
Final de noite e início da madrugada,  com a TV já desligada, o senhor dirigiu-se ao banheiro. Os três animais o seguiram e sentaram-se próximos à porta esperando por ele.
Ao entrar no quarto, para seu espanto, foi seguido pela trinca que se acomodou no chão ladeando a cama toda - um de cada lado e um nos pés.  
Isso é até compreensível e aceitável afinal ali havia ar condicionado e os cães com certeza também se acharam com até mais direito de usufruírem daquela temperatura amena, uma vez que eles eram os mais peludos do quarteto. Entendendo que esse era o costume, o senhor resolveu deixar a porta aberta para o caso de seus companheiros de quarto desejarem sair durante a noite para alguma balada. Na verdade ele é que de certa forma ficou sem chance de sair da cama no escuro pois correria o risco de pisar sem querer em um dos pimpolhos peludos e aí o forrobodó estaria armado.
Dormiu assim totalmente guardado pelo cães que a exemplo dos humanos, roncavam razoavelmente.  Situação curiosa e estranha, mas enfim, era uma nova experiência em sua vida.
Na bela manhã de domingo ensolarado lá estavam todos dividindo os espaços da casa e em perfeita harmonia após um sono reparador no quarto para quatro.  Assim passaram as horas daquele dia até que chegou o momento da partida.
No final da tarde o senhor arrumou suas coisas e seguindo as orientações recebidas, trancou a porta da sala que dava acesso à frente da casa enquanto a trinca peluda dormia sossegada no piso frio do cômodo. 
Ato seguinte, abriu o portão da rua para partir de vez, procurando agir sempre com total naturalidade para não chamar a atenção de frequentadores de um bar bem na frente do local.
Já na calçada e enquanto virava a chave na fechadura não notou que havia um recipiente com água bem próximo  dali e encostado ao muro. No exato instante em que muito discretamente fechava o portão, um grande e sedento cão  preto de rua, enfiou-se entre suas pernas e começou a beber a água da vasilha. 
Ao olhar para baixo e vendo o cão preto, o senhor se espantou e achando que era um de seus coleguinhas de quarto que havia escapado, começou a empurrá-lo para dentro da casa ao mesmo tempo em que o animal acionava com toda força seu breque improvisado usando as quatro patas, negando-se peremptoriamente a entrar na casa.  Cena hilária de quase rapto canino.
Alguns segundos depois ao ser alertado sobre o equívoco, deixou o assustado animal seguir sua vida de morador de rua, muito provavelmente sem terminar de matar a sede, já que naquele instante sua prioridade era bem outra: ir para bem longe dali.
Ainda mantendo discrição, ou melhor, o que ainda restava de discrição e obedecendo orientações recebidas, o senhor teria que jogar o chaveiro por cima do muro.
Antes de jogá-lo e para ter certeza de onde cairia, subiu numa saliência tipo barrado que havia no muro. E não é que nesse exato momento o dito cujo chaveiro resolveu escapar de suas mãos e cair na calçada provocando forte tilintar de sinos?   O gesto perfeitamente identificado à distância teve que ser repetido pela segunda vez, mas agora finalmente com sucesso.
A estas alturas toda e qualquer discrição que ainda havia foi de vez para o espaço. Só não notou todo aquele movimento, algum frequentador do bar que tivesse sérios problemas de visão.
Missão cumprida, retorno tranquilo para o lar. 
Por muito pouco o morador da casa ao chegar à noite, acreditaria piamente em geração espontânea já que deixara três cães e encontraria quatro animais instalados confortavelmente  em sua sala.

Santos, 25 de março de 2018


Ao Luiz Adhemar, que fez mais três amigos de 4 patinhas, ou melhor, de 4 patonas!!