terça-feira, 31 de maio de 2011

A VISITA DO ALPISTE



            Ela era muito responsável no trabalho.
Procurava manter tudo sobcontrole e dentro das exigências legais.
A despeito disso, mesmo sabendo que tudo estava em ordem, sempre ficava um tanto ansiosa na época em que um representante do Tribunal de Contas fazia análise dos documentos.  Isso ocorria geralmente em março e demorava alguns dias.  Por ser um tanto precavida, sempre antevendo uma próxima visita, fazia uma análise total dos documentos sob sua responsabilidade a fim de certificar-se que tudo estava nos conformes da lei.
Nos últimos anos esse representante era sempre o mesmo e talvez por força de sua função, era uma pessoa de pouquíssimas palavras e nenhum sorriso. Era a personificação da burocracia.  Atendia pelo sobrenome curioso de Alpiste.
Naquele início de janeiro e recém-chegada das férias, ela ainda se inteirava das últimas publicações oficiais e das ocorrências e providências adotadas durante sua ausência.
Estava totalmente concentrada nessa tarefa que nem se deu conta quando a chefe da administração adentrou sua sala acompanhada de um senhor.
De cabeça baixa e de costas para a porta, mexia em documentos na gaveta do arquivo quando ouviu a voz da colega de trabalho chamando-lhe a atenção:
- Veja quem veio nos visitar mais cedo esse ano!
Ficou intrigada já que a fala transmitia um mistura de surpresa e tensão.  Virou-se mais curiosa do que preocupada e viu ali, já de pastinhas nas mãos e crachá no peito, o representante do Tribunal, o senhor Alpiste.
Mesmo tendo certeza que tudo estava em ordem, sentiu um calafrio descer pela espinha já que ainda não havia feito a costumeira e última conferência antes de receber tal visita.
Tentando demonstrar naturalidade e que ele era bem-vindo em qualquer época do ano, prontamente estendeu a mão para cumprimentá-lo. 
Aconteceu, porém, que o susto com a visita tão inesperada provocou uma pequena pane em seus neurônios e sem se dar conta falou em alto e bom som:
- Bom dia senhor PARDAL !
Segundos de um silêncio constrangedor seguidos por uma imensa gargalhada da chefe de administração, que desencadeou nela também, um riso sem controle. 
Impossível se desculpar uma vez que nem conseguia falar para corrigir o ato falho.
Para sua surpresa e alívio, o sempre sério Senhor Alpiste também estava rindo muito com tudo aquilo. Pela primeira vez o viam descontrair-se.
Achou melhor deixar como estava para não falar mais bobagens e causar maiores danos. Lembrou-se que depois de alpiste e pardal, outra palavra relacionada seria gaiola!
Com certeza seu subconsciente a havia traído e desejado que surgisse ali, naquele momento, um pardal faminto, pronto para devorar aquele indigesto alpiste com pastinhas, crachá e tudo o mais que a fome mandasse.

Santos, abril de 2011

sábado, 28 de maio de 2011

BITA VÉIO !





          Problemas com goteiras e pronto: já eram escalados para solucionarem a questão sem reclamações ou senões. Era obedecer ou obedecer!
Como a construção era antiga, isso acontecia com certa frequência e a pouca idade de ambos não era empecilho, ao contrário era vantagem uma vez que por conta disso tinham o desconhecimento pleno de perigo, fato esse equivocadamente chamado de coragem.
O menino na casa de seus dez anos de idade e a irmã um ano mais nova, tornaram-se  experts no assunto e já faziam um trabalho em parceria perfeita, sempre com bons resultados.
Ele ia engatinhando no telhado da casa com todo cuidado para, além de não cair, também não quebrar mais telhas e como consequência levar algumas broncas.  Ela entrava no forro pelo alçapão e também engatinhando procurava o local onde houvesse penetração dos raios de sol, indicando telhas quebradas ou deslocadas.
A casa tinha um único pavimento mas apresentava uma altura razoável para um garoto.  Isso o obrigava a deslocar-se de maneira bem lenta, evitando olhar para baixo para espantar o medo.
A menina por sua vez deparava-se com algumas dificuldades também. Contava com seu pequeno tamanho para desviar-se das muitas teias com aranhas magrelas e de longas pernas que proliferavam no forro da casa, além de procurar se apoiar somente sobre os caibros largos pois as tábuas estavam atacadas por cupim e com certeza não aguentariam qualquer peso maior. Outro fator que dificultava seu deslocamento era a fiação elétrica toda trançada, se estendendo até o forro da casa vizinha já que eram prédios geminados.
A despeito dos riscos que ambos de certa forma julgavam pequenos, o trabalho na maioria das vezes era concluído com êxito. Assim que ela detectava onde estava a telha quebrada sinalizava para o irmão que se dirigia até o local já carregando uma telha nova para substituir a danificada.
Com o passar dos anos essas atividades começaram a diminuir pois ambos já adolescentes passaram a encarar o serviço como de muito risco e não o realizavam de bom grado. Pouco a pouco os reparadores de goteiras foram abandonando essa atividade, deixando-a para profissionais qualificados.
Decorridos mais de 30 anos dessa “aposentadoria”, tendo a casa agora dois pavimentos, eis que novamente o telhado voltou a apresentar problemas sem que alguém conseguisse resolvê-los.  Sempre após uma chuva chamava-se um pedreiro que aparentemente fazia o reparo; bastava chover para as goteiras aparecerem novamente.
A situação assim permaneceu por um bom tempo até que a menina, agora uma mulher, não teve mais como furtar-se ao que lhe era diariamente exigido pela mãe já estressada com a situação. Num dia bastante ensolarado subiu no forro para marcar o exato local da bendita goteira e assim tornar possível seu efetivo reparo por parte de um pedreiro a ser chamado posteriormente.
Logo no início um pequeno detalhe dificultou o trabalho.  A escada não atingia a altura da abertura no forro. Isso a obrigou a esticar-se o mais que pode e ergueu o corpo apoiando com força as mãos na entrada do alçapão.  Apoiou a seguir os antebraços fortemente na laje e aí sim, com um impulso final conseguiu passar todo o corpo pela abertura do alçapão e entrar de vez no forro da casa.
Na construção recente não havia mais a imensa quantidade de teias de aranhas como era comum encontrar em sua infância. Nem tampouco havia o risco de desabar uma vez que a laje oferecia segurança.  Deslocou-se até com relativa facilidade apesar do pouco espaço.
Não demorou muito para que visse os raios do sol atravessando telhas quebradas. Fez várias marcas no madeiramento prendendo inclusive um pedaço de tecido para indicar o local.
Serviço concluído eis que chegou o momento de sair do forro.
Foi quando se deparou com um grande problema.
O fato do último degrau da escada estar distante da abertura do alçapão a obrigava a descer e soltar o corpo de vez no ar, ainda sem o apoio dos degraus sob os pés e principalmente sem enxergar nada do que fazia uma vez que seu corpo, da cintura para cima, ainda estava dentro do forro.  Fez assim várias tentativas mas, o medo da queda não permitia que se soltasse de vez.  Tentou então descer de frente pois  talvez enxergando a distância que havia entre seus pés e o degrau da escada, teria coragem para soltar o corpo. 
Nada feito. Todo esforço resultava sempre em um grande receio de queda e muita risada uma vez que a cena ficava cada vez mais hilária.
Ao lado da escada aberta a mãe tentava incentivá-la dizendo que não havia como cair porque o degrau estava exatamente na direção dos seus pés, apenas mais abaixo. Nada a encorajava.
Passado um tempo, desanimada, cansada e com fome, sentou-se no forro com as pernas balançando no ar através do vão aberto do alçapão e pediu que a mãe lhe jogasse uma merendinha pois tão cedo não sairia dali. 
         Uma crise de riso tomou conta de ambas. Pensou então que o único jeito seria telefonar para os bombeiros para que viessem resgatá-la. Passaria por um vexame inesquecível afinal tratava-se de uma senhora trepada no forro da casa, no bom sentido claro!
Entendendo que era para tomar essa providência a mãe rapidamente pegou o telefone e já discava o famoso 193 quando foi interpelada pela filha que havia tido uma ideia para a solução do problema.
            Apesar da pouca agilidade física da mãe, pediu a ela que subisse nos primeiros degraus da escada e segurasse em suas pernas apenas para lhe dar confiança já que não teria como sustentar seu peso. Isso permitiria que ela vencesse o medo e soltasse o corpo no vazio até que seus pés encontrassem o apoio do degrau.
Sucesso! Missão cumprida e comprida.
De pernas ainda bambas jurou que jamais e sob pretexto algum, a convenceriam novamente a trepar e saracotear pelo forro de uma casa. 
          Para ser mais enfática ainda repetiu a expressão criada e muito usada pela própria mãe quando se referia a algo que era perigoso e do qual queria distância.
- BITA VÉIO! Não me pegam nunca mais!
  
Santos, 25 de maio de 2011
Para minha mãe recordando uma tarde de muitas risadas!

quinta-feira, 26 de maio de 2011

SUSSURROS DA NOITE


Gosto de ouvir a voz da noite cochichando em meus ouvidos. Ela é sábia, percebe, compreende e diz exatamente aquilo que preciso ouvir.
No atropelo do dia a dia os ruídos rotineiros e a ânsia de viver cada instante, entorpecem os pensamentos mais reflexivos e a conversa comigo fica para depois.
Quando a madrugada se instala e as vozes do mundo aquietam, aí sim consigo ouvir a fala da noite, ainda que entrecortada por um ou outro barulho que teima em não se calar.
De olhos fechados e no escuro do quarto, vou identificando cada som que grita lá fora: carros circulando, murmúrios do mar brincando de vai e vem na areia, latido solitário de um cão, sirene ao longe que traz sobressaltos e lembranças de um passado recente.
Ah! E quando chove bem mansinho, então?!  Essa conversa fica ainda mais agradável ritmada pelo barulhinho da chuva escorrendo nos vidros da janela do quarto.  Como já disse o poeta: “Gotas de água que em minha janela caiam, cantaram sua líquida melodia."*
A chuva canta baixinho enquanto a noite se põe a falar.
Começa num sussurro, cochichando mesmo, para que ninguém mais possa ouvir. Relembra os fatos recentes e logo parte para expectativas do dia que aguarda para nascer.
Espantoso como as ideias fervilham na mente nesses momentos! Já nem sei mais de quem é a voz que me fala. Um pensamento atropela o outro misturando assuntos e muitas vezes mostrando novos ângulos de situações que ainda não havia observado. A confusão de ideias que a princípio parece um caos logo toma sentido e no escuro da noite luzes iluminam soluções.
Outras vezes em meio a esse burburinho, a memória é revolvida e as histórias são recontadas e reinventadas na busca por finais felizes.  Nesses momentos realidade e sonhos se misturam ouvindo a voz que acalma o espírito falando com seu silêncio.
Pensamentos e ideias chegam aos ouvidos de maneira tão intensa que me forçam a levantar e transformar os sussurros em palavras soltas numa folha branca de papel.
No escuro da noite a alma se mostra clara e liberta, sem pudores, sem receios.  Desejos e sonhos pulam da mente para o papel num jogo mágico de letras que se combinam e se completam.
Como num jogo vou deslocando palavras, ora avançando, ora recuando casas, numa ansiedade tal que nem percebo quando a noite começa a se calar e seu sussurro dá lugar às vozes que acompanham o dia prestes a nascer.
Na superfície branca do papel, palavras concluem mais uma história anunciando final de jogo e final de noite.

Santos, 21 de maio de 2011

* CHOVEU - Ricardo.Rossi

quarta-feira, 25 de maio de 2011

QUANDO OS FANTASMAS SE ENCONTRAM



Ele fora despejado da cama e do quarto. Recebera transferência compulsória para a sala onde um sofá-cama seria seu novo reduto de repouso noturno. O nascimento de mais uma mulher na família ocasionara isso já que a casa era pequena.
Ficara, portanto, com um espaço só seu apenas à noite depois que todos já estivessem recolhidos em seus aposentos. Aí sim, o velho e pesado móvel transformava-se em sua cama após ser aberto com um barulho nada discreto.
Todos os dias por volta das 7h tinha que levantar, quisesse ou não, precisasse ou não, pois já era dia e “seu espaço” tornava-se lugar comum a toda a família em seus afazeres diários. Sua “carruagem” voltava a ser abóbora, ou melhor, voltava a ser o velho sofá de cor abóbora.
Da sala, de construção antiga, saiam dois corredores. Um bem escuro que levava à cozinha e ao quintal, locais que aos olhos de uma criança eram sombrios e assustadores nas longas noites. Apenas uma cortina o separava da sala. 
Um segundo corredor, no sentido oposto ao outro, levava aos quartos e à entrada da casa.
            A TV estrategicamente colocada num canto da sala, quando desligada, permitia observar através do reflexo da tela, embora sem detalhes, todo esse corredor e também a porta de entrada da residência.
Ninguém até então havia se preocupado com a imaginação criativa e apavorante (põe apavorante nisso!) daquele garoto.  Ao contrário, a despeito do desconforto, às vezes ele até recebia broncas já que se aproveitando das poucas horas nas quais reinava no pedaço,  o menino sorrateiramente ia à cozinha, pegava lata de leite condensado, fazia uns furinhos e deixava aquele sabor extremamente adocicado descer goela abaixo. Quem nunca fez isso na vida?
Na sequência, para evitar que vissem sua arte, guardava a “arma do crime” temporariamente dentro do sofá-cama esperando para desfazer-se dela na manhã seguinte, coisa que costumeiramente se esquecia de fazer.  Uma vez a bronca foi homérica pois a mãe encontrou de uma só vez, 3 latas vazias.
Naquela noite em especial seus temores estavam mais aflorados que o normal e nem se aventurou a percorrer o corredor escuro para fazer saques na cozinha.
Corroborando para isso, o vento começou a brincar com as cortinas que em seus movimentos de vai-e-vem, formavam vultos e caretas que zombavam do menino, alem de deixarem exposta a escuridão plena que reinava no corredor e cozinha.
            O assoalho velho também entrou no clima e deu seus estalidos característicos.
E foi assim, num cenário tipicamente hitchcokiano formado pela penumbra da sala, gemidos do vento e cortinas esvoaçantes, que ele deitou. Como sempre, fosse inverno ou verão, enrolou-se todo no lençol deixando somente parte do rosto para fora afinal, respirar era preciso. Aos poucos o sono foi lhe vencendo e acabou dormindo.
A temperatura alta do dia seguida de uma queda brusca à noite, talvez tenha sido o fator desencadeador de toda a confusão que se seguiu.
As tábuas largas do velho assoalho num processo de contração passaram a ranger com maior intensidade naquela noite e acabaram por acordar o pai que dormia no quarto da frente. Cismado com os ruídos resolveu levantar e pé ante pé foi saindo do quarto para espiar no corredor. Como o barulho persistisse, ele andava um passo e parava tentando confirmar se realmente o barulho era do assoalho estralando ou de algum ladrão andando no forro de madeira da casa.
Ainda enrolado em seu lençol branco o garoto também acordou e de olhos arregalados viu apavorado através do reflexo na tela da TV, um vulto vindo vagarosamente (e para ele, perigosamente) pelo corredor em direção à sala.  A cada passo lento e silencioso do vulto, o coração do menino acelerava e ele esperando pelo pior começou  a erguer-se ficando pronto para fugir em disparada daquele fantasma que se aproximava.
O pai que estava mais preocupado em checar o barulho, nem se lembrou que o filho dormia no sofá-cama. Para a sala foi se dirigindo bem devagar pois munido de toda sua grande coragem, pretendia pegar o pretenso ladrão totalmente desavisado.
Já em pé e ainda enrolado no lençol, o garoto sentiu o coração quase sair pela boca e entrou em pânico assim que o vulto surgiu de vez na semiescuridão da sala. No desespero para fugir, deu um pinote e num pique só, saiu gritando e correndo em direção à escuridão da cozinha fazendo esvoaçar o lençol branco que o cobria.
O pai que até então estava silente, deu um grito de pavor ao ver um fantasma correndo na sua sala, ao vivo e a cores! Virou rapidamente nos calcanhares e praticamente voou de volta para seu quarto batendo e trancando a porta. Com o susto nem se lembrou que um fantasma que se preze atravessa portas e paredes. Toda sua valentia evaporou num segundo.
A gritaria acordou toda a família que indagava o motivo do escândalo em plena madrugada. Ouvindo a voz da mãe, o garoto começou a voltar devagarzinho para a sala ainda envolto no lençol deixando à mostra somente um par de olhos arregalados.
Foi quando tudo se esclareceu e haja água com açúcar para acalmar os dois fantasmas.
A partir daquela noite as mulheres da família ficaram convictas de quão protegidas estavam pelos dois corajosos homens da casa.

Santos, março de 2011

Ao meu pai (in memorian) e ao Edo, protagonistas desta história.

domingo, 22 de maio de 2011

UM DIA DAQUELES - Parte 2

Há um ditado popular que diz que desgraça atrai desgraça.
Neste caso específico diria que trapalhada atrai trapalhada.
Há dias ela vinha convivendo com o mesmo problema e já havia passado um grande constrangimento ao dar entrada num singelo pedido de exame de fezes. Havia deixado a mercadoria coletada em casa devidamente guardada num armário e levou para análise, um potinho completamente vazio.
O problema é que a história não acabou por aí!
No dia marcado para retorno à médica, chovia tanto que cachorro bebia água em pé, como dizia meu avô!
Depois de dar várias voltas com o carro eis que conseguiu uma vaga bem em frente ao prédio do consultório. Aliás, diga-se de passagem, uma vaga apertadíssima e ela corajosamente parou o trânsito na avenida para fazer a manobra.
Ao concluir a árdua tarefa, já estava suando muito e um tanto nervosa como soe acontecer.
Porta do carro aberta e ainda sentada pôs a bolsa no ombro, com certa dificuldade abriu a sombrinha no espaço entre a porta e o capô, pegou a chave do carro e virou as pernas em direção à calçada.
OPA !!!!!!!!!!
Na beirada da calçada, bem na direção de seus pés, havia uma enorme montanha de fezes caninas.
Com a chuva, aquilo tudo estava, como direi? - totalmente esparramado!
Parou no ato, com as pernas ainda levantadas e a sombrinha já aberta.
Assim ficou por alguns segundos e chegou a sorrir perguntando-se o que Gene Kelly faria numa situação dessas em seu Dançando na Chuva!  Será que sairia sapateando por cima de tudo aquilo?
Esticou-se o mais que pôde visto ter pouca estatura (portanto pernas curtas) e cuidadosamente apoiando os pés distantes das mimosas fezes, conseguiu sair do carro. Esse alongamento improvisado provocou leves fisgadas no ciático, afinal já fez 15 anos há tempos.
Foi quando o fato se deu!
A bolsa que até então estava quietinha e apoiada em seu ombro direito resolveu escorregar e pra seu espanto ...proft....caiu em cheio em cima de toda aquela mer_cadoria.
Apesar de ser moça de família quase boa, não se conteve e soltou um sonoro palavrão. Afinal este tipo de subproduto estava azarando sua vida já há dias.
Em baixo de chuva, mal se protegendo com a sombrinha, mancando um pouco por conta da dorzinha no ciático, pegou a bolsa e como único recurso disponível, esfregou-a no tronco de uma árvore usando as folhas molhadas para limpar o estrago.
Nesse momento ficou feliz em usar uma bolsa Victor Hugo made em Paraguai.
Feito isso e com a classe recuperada entrou no consultório. Na sala de espera sentou, pegou uma revista e apoiou a bolsa no sofá ao seu lado.
Imitando a expressão das demais pessoas, fez pose de quem não estava nem aí com a consulta. Afinal, pensou consigo mesma, ir a uma proctologista é tão natural quanto ir ao cabeleireiro.
Quando a secretária falou seu nome, levantou-se e ao erguer a bolsa ficou apalermada com o que viu. 
O tecido claro do sofá apresentava várias manchas na cor marrom, velhas conhecidas suas!  Não havia limpado a bolsa direito e a sujeira que ainda restava nela, saiu toda no sofá.
Na pressa não teve outra saída a não ser jogar a revista sobre o local.
Ao sair da sala da médica olhou disfarçadamente para o cantinho do sofá e lá estava a revista bem quietinha, impávida e exatamente no mesmo local.
Foi embora na maior dúvida: será que realmente ninguém quis lê-la ou acharam que naquele local ela dava um toque especial à decoração do ambiente, escondendo uns tons marrons que destoavam de tudo?            
                       
Santos, janeiro de 2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

UM DIA DAQUELES - Parte 1

                Há tempos ela vinha sentindo alguns probleminhas em sua região sentante.
                Conversando com amigas ouviu vários conselhos como por exemplo, passar pomada, vapor de planta babosa, passar vick-vaporub (já pensaram a ardência que deve provocar???) e outras coisas mais.
                Acabou chegando à conclusão que o mais correto seria ir a um médico de fiofó e foi o que fez. A médica, uma brincalhona por excelência, quis saber se ela era nascida em Itu por conta do tamanho do problema.
               Saiu do consultório com um pedido de exame de fezes.
               Como era excessivamente precavida em vez de comprar um potinho coletor de material, comprou logo dois de uma vez, mesmo porque nunca havia feito este tipo de exame e no mínimo pensou que a amostragem seria por quilo!
               Na manhã seguinte fez todo um cerimonial para coletar o material e triunfante levou o potinho para o laboratório dentro da caixinha fechada e devidamente embrulhada, imaginando inocentemente que ninguém fosse saber seu conteúdo.
               Para sua surpresa ao chegar ao local, a recepcionista avisou-a que deveria levar três potes e não um único pois a solicitação médica era para três exames diferentes. Marinheira de primeira viagem ela não havia observado isso.
              Teria que voltar no dia seguinte para completar as amostras pois a “matéria prima” do dia, àquela hora, já deveria estar em pleno Atlântico, passando "por mares nunca dantes navegados.”              
              Mas as confusões ainda não haviam acabado.
              Preencheu a guia para entregar somente uma amostra e ficou aguardando ser chamada na sala interna para entregar o material que estava até então, dentro de sua bolsa, hermeticamente fechado e embrulhado para evitar percepções visuais e olfativas.
              Ao ouvir seu nome levantou-se lampeira e foi ao encontro do simpático rapaz. Com cara de paisagem como se nada daquilo fosse com ela, entregou-lhe a caixinha que ele desembrulhou e abriu rapidamente sem esconder um sorriso irônico.
          
  Para espanto dele e dela mais ainda, o potinho estava vazio, absolutamente   v a z i o !
             Num átimo ela deduziu o que havia acontecido: tinha levado o pote vazio e guardado no armário de sua casa, o potinho com o material coletado!
              Ainda sob o impacto da surpresa avisou que iria buscar o que já deveria estar ali.  Segundo o rapaz, o prazo de validade do “produto” seria de uma hora fora da geladeira.
  Foi voando para casa e retornou mais rápido ainda.
              Ao entrar no laboratório não quis pegar senha, ficar na fila novamente e esperar um certo tempo, mesmo porque o prazo de validade estava se esgotando.
             Foi direto ao balcão onde a recepcionista a reconheceu e mal disfarçando o riso disse:
            - A senhora é a pessoa que se esqueceu de trazer...a...o...a...o (ficou gaguejando) e ela então completou a frase rapidinho:
             - Sou eu sim. Esqueci de trazer a MER .......cadoria!!!

Santos, outubro de 2010.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A MOLA

O senso de humor não era seu ponto forte. Não era dada a gostar de piadas, a assistir comédias e nem sempre aceitava brincadeiras que a envolvessem.
A despeito disso possuía uma facilidade muito grande para emitir frases de efeito nas horas mais inesperadas, o que tornava o fato em pauta muito engraçado, provocando muitas risadas.
Um desses momentos acabou desencadeando nela própria uma grande crise de riso, fato muito raro de ser observado.
Numa manhã até então tranquila estava sozinha no quintal de sua casa ocupada com afazeres domésticos quando ouviu a campainha soar indicando que alguém esperava ser atendido na entrada da residência. 
Como estava com as mãos ensaboadas lavou-as, enxugou-as e somente depois dirigiu-se até a porta da rua. A distância a ser percorrida era grande e sua idade já não permitia que se locomovesse com muita agilidade.
Enquanto fazia todo esse percurso, o som estridente da campainha começou a se repetir insistentemente deixando-a cada vez mais irada à medida que se aproximava da frente da casa.
Até que muito irritada abriu de supetão a porta da rua no exato momento em que um rapaz apertava o botão da campanhia pela enésima vez.
Foi o que bastou. 
Com as mãos na cintura e em posição autoritária de quem tira satisfações soltou a frase em alto e bom som:
- VOCÊ PENSA QUE TENHO MOLA NA BUNDA? VOCÊ APERTA AÍ E EU JÁ PULO AQUI?
O rapaz totalmente desconcertado diante das palavras daquela senhora ainda tentou se justificar dizendo que repetiu várias vezes o gesto pois não ouvia a campainha soar.
          Recebeu a resposta  alterada que não era para ele, na rua, ouvir o som, e sim para quem estivesse dentro da casa. 
         Constrangido o rapaz sem dizer mais nada entregou a encomenda e tratou de sair o mais rápido possível de cena com medo que lhe sobrasse algum sopapo já que uma séria ameaça pairava no ar.
       Ela então imaginando-se sentada sobre uma grande mola e saltitando pela casa acabou tendo uma crise de riso que se repetia toda vez que se lembrava do fato.
          Concluiu afinal que não seria má ideia ter uma mola na bunda!


Eis D. Daisy, minha mãe, pessoa ímpar em todos os sentidos a quem presto uma homenagem contando esse fato.  Espero que não fique muito irada comigo por  divulgar seus "causos" e assim matar um pouco as saudades.

Santos, 19 de maio de 2011.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

CRISTO NO TRÂNSITO




Para que a discussão tivesse início bastava uma palavra mal entendida, uma  entonação de voz mais elevada ou um simples gesto mal recebido.
Ela estava acostumada com isso e também sabia que dali a alguns minutos tudo estaria tranquilo novamente.  Por esse motivo não se abalou inicialmente quando o casal começou a discussão.
Na posição em que estava sentada podia ver a cena embora a luminosidade estivesse prejudicada: a mãe parada diante da mesa da cozinha na semiescuridão apalpava um objeto pequeno que estava em suas mãos.  Ato contínuo, perguntou ao marido o que ele havia posto sobre a mesa, mas, já deduzindo pelo tato, questionou:
- É um guarda de trânsito?
A resposta veio rápida e carregada de irritação.
- Como guarda de trânsito?  Não está vendo que é meu chaveiro com a imagem do Cristo Redentor feita em madeira?
Ainda apalpando ela reafirmou seu pensamento concluindo com toda certeza que só poderia ser a figura de um guarda de trânsito.
Os diálogos foram se exaltando e despertaram o interesse da filha pelo objeto desencadeador de tão repentina e ferrenha discussão no curto prazo de segundos.
Dirigiu-se até a cozinha ao mesmo tempo em que o pai também lá chegava criticando a esposa por ser incapaz de perceber que era seu chaveiro do Cristo que ela segurava nas mãos. As respostas do outro lado vinham rápidas na base do “Eu sei o que estou falando!”
Enquanto as farpas eram trocadas entre ambos, a filha acendeu a luz no ambiente e tudo se iluminou, ou melhor, tudo se esclareceu.
Nas mãos da mãe realmente estava o chaveiro de madeira que trazia a imagem de Cristo. Um detalhe porem fazia toda a diferença.
Cristo estava com o braço esquerdo decepado na altura do ombro.  Era um perfeito guarda de trânsito em plena atuação.
Diante dos olhares surpresos a voz saiu vitoriosa:
- Não falei que era um guarda de trânsito!!!
Ele ainda tentando entender o que havia acontecido, apalpou o bolso da calça e encontrou o braço esquerdo da imagem.  Com certeza havia sentado sobre o chaveiro e provocado a amputação involuntária do Cristo.
A expressão de espanto do pai foi desfeita e dessa vez a discussão terminou em gargalhadas ao som das quais, Cristo teve reimplantado seu braço esquerdo à custa de muita cola.
E foi assim que o trânsito perdeu seu mais novo e ilustre funcionário!

Santos, fevereiro de 2011

terça-feira, 17 de maio de 2011

É COM C ?

   



 Puro constrangimento foi o que ocorreu há alguns anos por causa de minha preocupação em escrever de forma correta os nomes das pessoas. O fato virou piada real em meu ambiente de trabalho.
    Falando ao telefone com diretor de uma empresa, fui escrevendo rapidamente as informações que ele necessitava.
    Depois de tudo anotado, fez-me o pedido para que enviasse urgente todos os dados, via fax (e-mails ainda não eram muito utilizados) para sua empresa.
    Perguntei-lhe então aos cuidados de quem o fax deveria ser encaminhado.
    Foi aí que o fato se deu.
    Ouvi do outro lado da linha uma resposta rápida:
    - Anote meu sobrenome que chegará direto em minhas mãos.
    O sobrenome era Curi. 
    Quando fui anotar essa palavra, lembrei-me que em minha cidade havia uma família com o mesmo sobrenome escrito com a inicial K. Na ansiedade em atendê-lo e com dúvida da ortografia, acabei fazendo a fatídica pergunta :
    - Seu Cu é com C ou com K ?
    Ao mesmo tempo em que eu ouvia incrédula a pergunta que havia feito, vi também as expressões de espanto nas faces de colegas de trabalho que estavam ao meu lado.
    Perdi a voz e as pernas bambearam. 
    Do outro lado da linha também fez-se completo silêncio.
    Nesse tempo de mutismo total que para mim pareceram horas, pensava e rezava pedindo que ele não tivesse entendido minha pergunta.
    Ao final de alguns segundos ouvi uma estrondosa gargalhada. Tentei explicar o inexplicável mas ele nem me ouvia e acabou respondendo sem parar de rir:
    - Meu Cu é com C mesmo, pode por aí sem medo, Cu com C !
     Nem nos despedimos pois ele teve uma crise de riso e eu também, no que fomos acompanhados por todos colegas que ainda sem entender o que acontecera, estavam pasmos em saber de meu interesse pela anatomia de um diretor de empresa.
    Após recuperar-me do choque fiquei pensando: acho que ele demorou a responder porque foi verificar se realmente seu Cu era com C ou com K !

Santos, abril de 2004

AS NUVENS E O VENTO - (um conto para a menina Luíza)


                     
                             
Uma vez duas nuvens passeavam tranquilamente pelo céu bem azul.
As duas eram bem gordinhas e mais pareciam dois carneirinhos voadores.
Você já viu nuvens assim?
O vento brincava com as duas empurrando-as de um lado para outro mas elas não paravam de conversar.
Nevinha era a mais faladeira.
Falava por todas as gotinhas de água que tinha e você deve saber que há muitas gotinhas d'água numa nuvem.
Já Branquinha era mais quieta porem vivia inventando brincadeiras que faziam todas as outras nuvens rirem.
Numa dessas sopradas que o vento dá, Branquinha e Nevinha foram parar sobre um campo todo verde, cheinho de árvores.
Depois de admirar lá de cima aquela paisagem tão bonita, Branquinha enxergou um menino sozinho, deitado na grama olhando para elas. 
Chamou Nevinha e resolveram brincar um pouco com o garoto.
Você que lê esta historinha já ficou olhando as nuvens no céu e vendo as formas que elas fazem?
Pois então, o menino estava justamente deitado no chão para olhar as nuvens e seus formatos.
Branquinha pediu ajuda ao vento Fiufiu e na mesma hora ele começou a soprar.
Estica aqui, puxa ali, engorda ali e pronto, elas pareciam perfeitos peixinhos que conseguiam nadar no ar.
Fiufiu gostou da brincadeira e começou a soprar de tal forma que elas iam e vinham de um lado para outro. O garoto esfregou os olhos imaginando que estava sonhando mas ao olhar de novo, viu nuvens peixes nadando lá em cima no céu azul.
Correu a chamar os amigos e em pouco tempo a criançada pulava lá em baixo fazendo uma grande farra.
Nevinha e Branquinha se mexiam tanto de um lado para outro se divertindo com as crianças que de repente as duas se distrairam e se juntaram formando um peixão enoooooorme!!!!!!
As crianças fizeram a maior festa vendo tudo aquilo.
Quando Nevinha e Branquinha se juntaram, as gotinhas de água das duas se uniram também, ficando maiores e mais pesadas.  O peso foi muito grande e adivinha só o que aconteceu?????????????
Caiu a maior chuva !!!!!!!!!!!!
Nevinha e Branquinha despencaram na forma de chuva e deixaram a molecada lá em baixo toda molhadinha, ensopadinha.
Fiufiu que ficou assistindo tudo deu tanta risada que fez até barulho....vuuuuuuuuuuuuuuu !!!!! Depois foi embora procurando outras nuvens  para brincar.

Você já tomou banho de chuva???  No calor é bem gostoso!!!

Santos, fevereiro de 2005
       

A QUEDA

   


      Cai na rua e pasmem, cai de quatro com toda categoria!
    Subindo na calçada toda lampeira e usando uma sandália da moda, o pé escorregou.
    Capengando consegui subir na calçada literalmente catando coquinhos ou como também se diz, catando cavacos.
    Depois de uns três largos e desajeitados passos, vi que a calçada estava perigosamente chegando mais perto de meu rosto, ou melhor, meu rosto estava cada vez mais perto da calçada.
    Como eu vestia saia curta, decidi ao menos cair com classe e foi o que fiz ou tentei fazer, segurando a roupa com a mão esquerda, enquanto com a direita tentava amparar a queda.
    Escutei umas vozes ao meu lado gritando cuidado, cuidado, mas não houve tempo para maiores cuidados.
    Senti um baque duro nos joelhos e na palma da mão, enquanto via minha bolsa voando para um lado e os óculos (finos óculos de sol comprados de camelô) voando para outro.
     Parei de cair numa posição no mínimo curiosa: estava ajoelhada, tronco abaixado, quadris erguidos e o rosto quase tocando o chão.
    Apesar da dor e do susto uma pergunta passou por minha cabeça: Será que ao menos estou voltada em direção à Meca? 
    Como sou elétrica, fiquei em pé num instante ajudada por dois benfeitores que depois cataram meus pertences esparramados pela calçada.
    Enquanto me recompunha vi com os cantinhos dos olhos, que uma pequena roda de curiosos se formara à minha volta e mal disfarçava o riso. Quando pago mico faço o serviço completo e havia caído justamente em frente à porta de entrada de um shopping. 
    Apesar de ser o centro das atenções, fiz cara de paisagem como se nada fosse comigo, afinal categoria é categoria até no maior vexame!
    Limpei os joelhos, as mãos e acalmei meus auxiliares dizendo que estava bem. 
    Na verdade queria sair logo dali, pois ao imaginar como tinha sido a cena presenciada por toda aquela plateia, estava prestes a ter uma crise de riso incontrolável.
    Sai andando com toda classe (ou o que restava dela) e o mais importante, caminhei sem mancar apesar da imensa dor no joelho esquerdo que ainda sangrava um pouco e foi o mais prejudicado, já que a mão esquerda ficou segurando a saia durante minha acrobática performance.
    No caminho, virei na primeira esquina que encontrei e já fora da vista dos curiosos, não me contive e mesmo sozinha comecei a gargalhar. As lágrimas pingavam de meu rosto.
    Quem passava por mim olhava assustado para aquela figura com joelho sangrando e rindo sozinha até às lágrimas.
    Toda categoria tinha ido para o espaço!
    Mais tarde, já no recôndito de meu lar e devidamente medicada, fui conferir os pertences que na queda se esparramaram pelo chão. Uma boa notícia: os finos óculos do camelô não quebraram!!!
    Uma dúvida ainda paira no ar:
- Alguém sabe para que lado se encontra Meca?


Santos, 10 de março de 2005