Após
longos anos de estrada percorrida nesta vida terrena é muito gratificante
pararmos um pouco o relógio do tempo e olharmos, nem que seja por alguns
minutos, todo o caminho já percorrido.
Da
infância à fase adulta passamos por experiências das mais variadas possíveis.
Obviamente
haverá muitas lembranças que nos machucaram, mas aí entra neste instante, nossa
capacidade de sublimarmos tais fatos e nos atermos somente àqueles que fazem
brotar instantaneamente um sorriso na face.
Quando
me proponho a fazer tal exercício meus
pensamentos mais demorados correspondem à segunda infância e juventude. Creio que isto deva se passar também com a
maior parte das pessoas.
É
inegável que a vida nestas faixas etárias, quando estamos ainda de certa forma
descompromissados com nossa função e participação na sociedade como um todo,
tudo se compare à conhecida expressão "mar de rosas". Talvez por isso mesmo permitimos que nossa
alma sonhe, e sonhe alto, dando-nos aquela vontade enorme de abraçar o mundo.
Quem
já não teve ou ainda tem esta vontade?
As
lembranças que trago da infância me são muito caras, a despeito de ainda
crianças, faixa dos 7 e 8 anos, eu e meu irmão já trabalharmos várias horas por
dia na papelaria de meus pais com obrigações e cumprimento de tarefas.
A
memória guarda com muito carinho as brincadeiras com irmão, primos e outras
crianças, tanto nas ruas quando o asfalto ainda não havia sufocado as pedras do
calçamento, como nas dependências do armazém e fábricas de meu avô e tios-avós.
Num
instante me vejo escalando juntamente com mais crianças, sacas e sacas de
açúcar cristal empilhadas num depósito escuro na refinação de açúcar, onde
entrávamos escondidos dos adultos.
Era
uma delícia furarmos os cantinhos do tecido e comermos o açúcar que escorria
pelos buraquinhos feitos. Além de
saborearmos o doce, havia também a emoção da aventura pois fazíamos isso sempre
de olho na porta do depósito com receio que alguém nos flagrasse. Quando isso
acontecia era uma correria só. Cada
criança corria para um lado com o coração aos pulos.
Outra
aventura prazerosa era invadirmos a adega que ficava no quintal no centro da
fábrica de macarrão. Impossível esquecer
a emoção temperada pelo medo e pela curiosidade ao descermos os degraus cheios
de limbo verde, e entrarmos num ambiente na semiobscuridade sentindo teias de
aranhas enroscando nos braços e rosto. A sensação da aventura suplantava
qualquer receio maior.
No
fundo da adega víamos garrafas e mais garrafas de vinhos que eram destinados ao
consumo da família. Nunca mexemos nelas pois sabíamos até onde nosso
atrevimento poderia chegar. Esta
brincadeira teve um final súbito pois numa das invasões fomos vistos por tia
Fiorina, que da janela do salão do sobrado deu o grito de alerta aos
funcionários e aí a correria foi imediata. Lembro-me que ficamos sem aparecer
em casa por algumas horas até que a bronca dos adultos amenizasse.
Não
há como esquecer a delícia que era na fábrica de macarrão, ser colocada sentadinha sobre a prateleira
mais baixa dos carrinhos que possuíam vários andares de varais destinados a
pendurar espaguetes recém preparados. Tais carrinhos tinham rodinhas e eram
levados por funcionários (Gino e Zanardi) até a sala de secagem onde havia um enorme ventilador
que tomava toda a parede do ambiente.
Como eu era a menor da turma e única menina, tinha o privilégio desta
brincadeira. O carrinho era então empurrado em alta velocidade por um longo
corredor que levava até a sala do secador e eu ria muito neste trajeto, sentido
as pontas dos espaguetes úmidos batendo em meu rosto. Óbvio que essa
brincadeira também não chegava aos ouvidos de meu avô e principalmente de meu tio-avô Casemiro (Pipe) que era muito sério e sisudo
nos causando certo receio e distanciamento dele. Creio que fosse amoroso como
meu avô, mas naqueles tempos as crianças não tinham a liberdade que hoje
possuem no meio dos adultos.
Na
esquina da fábrica, bem no canto da avenida 8 com rua 3, meu avô administrava
o armazém da família onde sempre havia encostada à porta, uma caixa de madeira
com bacalhaus secos. Uma de minhas traquinices era ao passar por ali, beliscar
pedações destes peixes e sair curtindo o gostinho de sal na boca, enquanto meu
avô entre bravo e sorridente, me dizia: "Migila,
não estrague o produto!"
Nunca
soube o motivo dele às vezes se referir a mim com este apelido.
Interessante
que depois desta fase passei a não gostar de peixes. Apenas recentemente
comecei a aceitá-los no cardápio.
O
portão da garagem da fábrica era de madeira grossa mas cheia de vãos pelos
quais podíamos ver as pessoas passando pelas duas calçadas da avenida 8.
Isso
era um convite para outra arte! Fazermos
canudinhos de papel na forma de cone, fechados numa extremidade e abertos na
outra. Colocávamos tais canudinhos dentro de talo oco de mamona e ficávamos à
espreita de uma vítima que passasse na calçada mas do outro lado, pois caso contrário
seríamos imediatamente identificados. Tínhamos
portanto que dar um forte sopro. Ao sentir a batida do canudo em seu corpo a
pessoa parava, se apalpava, olhava em volta e nada via, enquanto a criançada
segurava a risada por trás do portão.
Essas
e muitas outras lembranças da infância me fazem sorrir sempre ao revivê-las
como neste momento.
Meus bons tempos de criança!
Sou
obrigada a contrariar Ataulfo Alves: "Eu
era feliz e sabia!"*
Santos, 07 de outubro de
2020
Aos companheiros destas aventuras da infância na fábrica da família: Edo, Chico, Benito (in memoriam), Arnaldo e Cláudio Emílio.
* Meus tempos de criança - Ataulfo Alves