segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A PALPITEIRA



Interessante como certas pessoas não resistem à tentação de palpitarem em determinadas questões alheias, mesmo quando não são (diria até, que principalmente quando não são) solicitadas para isso.
Independente do desejo de ser útil ou não, a impressão que passa é a da necessidade de mostrar conhecimento e domínio sobre o assunto.  Daí, à vontade de exibi-los, é um passo!
Felizmente tenho encontrado pelo caminho que trilho já há algumas décadas, poucas pessoas com este perfil.  De um modo geral, as opiniões foram muito bem-vindas e bem intencionadas.
Um caso, entretanto, ficou registrado não somente em minha memória, mas também na memória das pessoas que o presenciaram.
Durante um curso básico para iniciantes em informática, já não tão jovens, as orientações eram dadas individualmente para cada cursista, passo a passo, de tal forma que ele próprio realizasse as tarefas no computador.
Alguns alunos tinham um pouco mais de conhecimento sobre o assunto, enquanto outros partiam da estaca zero; daí a importância do atendimento individual.
Enquanto eu explicava como formatar um texto a uma pessoa que nunca havia sentado diante de uma máquina destas, comecei a ouvir palpites da aluna ao lado, que a cada explicação minha, citava outros comandos possíveis para se conseguir o mesmo resultado na formatação.
Um olhar atravessado, simplesmente não resolveu.
Aquele comportamento foi causando uma grande irritação, já que a pessoa que estava sendo atendida, ao ouvir os comentários da colega, começou a se confundir.
Seguindo as normas da boa educação, a princípio solicitei que parasse de palpitar, pois o objetivo era ensinar bem um comando e quando a aluna se sentisse mais confiante e segura, poderia explorar e assimilar outros diferentes caminhos na formatação de um texto.
A palpiteira, entretanto, fez ouvidos moucos, sempre acrescentando alguma outra informação, a cada orientação que era dada.
Foi quando minha paciência, que é até razoável, foi para o espaço.
Pedi que se calasse e na sequência, já com a voz mais elevada, desencavei uma antiga frase muito usada por minha mãe nestas situações:
- Quer dar licença?! Cada um desce do cavalo como quiser!!!  E tenho dito!
Se ela entendeu ou não eu não sei. Talvez, esteja procurando o cavalo até hoje, mas foi o que bastou.
Com ar de assombro, finalmente a palpiteira se calou.

Santos, 9 de dezembro de 2013 


Para Alice, que desconhecia a frase e riu muito presenciando a cena.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O CASO DAS CARTEIRAS SUSPENSAS






Foi este o criativo cartaz que encontrei colado na porta de minha sala de trabalho, ao retornar das férias em meados de um distante janeiro.  Ao lado do cartaz, pendurada na porta, havia uma imensa concha de alumínio com uma boneca sentada sobre ela.
Era a divertida sugestão para atender à demanda escolar em 1991.
Início de ano sempre foi o período mais conturbado no Setor de Planejamento.  A partir da segunda quinzena de janeiro a situação tornava-se às vezes, tragicômica.
A busca por vagas em escolas, era constante. Os mais diferentes motivos levavam os pais a se dirigirem ao órgão competente, reivindicando matrículas.
Eram alunos que chegavam de mudança de outros municípios, alunos que haviam abandonado os estudos e queriam retomá-los, alunos oriundos de escolas particulares, alunos que desejavam mudar de escola ou de período, e muitos outros motivos plenamente justificados.
O atendimento era feito obedecendo a prioridades e possibilidades, mas às vezes, ele não era do agrado dos pais, já que era muito comum haver opção por dois ou três estabelecimentos de ensino, tidos como tradicionais.
Buscando valer a todo custo seus pedidos, fossem eles pertinentes ou não, não era raro algum pai ir acompanhado de um político, com o claro objetivo de pressionar para que o nome de seu filho passasse na frente dos demais, nas então existentes listas de espera nestas escolas mais disputadas. 
Era o conhecido jeitinho brasileiro de querer levar vantagem sobre os outros.
É bom que se esclareça que aluno algum ficava sem vaga para estudar. As listas eram feitas para que num segundo momento, assim que surgisse a oportunidade na escola/período desejados, os pedidos específicos fossem atendidos.
Ao longo de todo mês de janeiro e até o princípio de fevereiro, ocorria uma verdadeira romaria no Setor de Planejamento.
Uma manhã fui chamada à Portaria para receber um pequeno grupo de pais que desejavam transferir os filhos, já matriculados, para a outra escola do bairro, ambas bem próximas.
Lembro-me do espanto que senti ao saber que o motivo de tais pedidos, baseava-se unicamente no fato da direção da atual escola ser exigente, pois não permitia que os alunos chegassem atrasados às aulas. Alegavam que não conseguiam fazer os filhos dormirem cedo e que, portanto, no dia seguinte, era difícil tirar os adolescentes da cama.
Dentre os pais notei um senhor que a princípio considerei ser um profissional dos correios, já que usava calças e camisa exatamente da cor do uniforme dos carteiros.
No meio do falatório com as justificativas das mais absurdas, este senhor elevou bastante o tom da voz e num verdadeiro discurso, exigiu o pronto atendimento das solicitações.
Diante da negativa recebida graças à inexistência de vagas na outra escola,  naquele momento, o autor do discurso fez várias ameaças usando nomes de autoridades, que dizia pertencerem a seu círculo próximo de amizades.
Após todos se retirarem com a promessa de atendimento se e quando fosse possível, uma funcionária que de longe tudo presenciara, comentou a exaltação exagerada do político no meio do grupo.
O senhor que para mim era um profissional dos correios, na realidade era um político ligado ao comércio local, conhecido pelas polêmicas que criava onde quer que fosse.
Estava explicado o motivo de todo aquele discurso feito pelo pseudocarteiro diante dos pais eleitores.  O nobre edil não havia sido tratado como Vossa Excelência, num visível gesto de deselegância de minha parte.
Logo depois deste fato, ele desistiu da carreira política por estar envolvido em falcatruas. Os anos passaram, veio a aposentadoria e as ameaças ao meu cargo feitas naquela manhã pelo pseudocarteiro, não se concretizaram.
Hoje, revendo esta foto da carteira suspensa, voltei aos tempos de A.P.  (Assistente de Planejamento), na Delegacia de Ensino, função que apesar de também ser conhecida com Armazém de Pancada, deixou boas e belas recordações, como tudo que vivi no magistério.

Santos, 27 de novembro de 2013 

Para Rosmari, Cecília e Júlia, idealizadoras das revolucionárias carteiras suspensas.
Alguém quer patentear esta ideia???



segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O PADRE E O ATOLEIRO



A chuva persistente nesta primavera cai mansa e suave, sem causar estragos.
Lembro-me de um tempo em que a menor ameaça de chuva, até mesmo uma simples garoa, já causava apreensão a um grupo de professores.
A escola onde trabalhavam ficava no município vizinho, distante 20 km. Embora o percurso não fosse tão longo, a estrada de pista única, era de terra batida, sem acostamento e mal conservada. Para complicar um pouco mais, havia muitas curvas e tráfego de caminhões.
Nos tempos de seca, a poeira era intensa e dificultava a visão. Entretanto, quando as chuvas chegavam, o pó era substituído por lama e aí sim, as complicações aumentavam.
Não era raro o carro de algum professor ficar atolado na estrada à espera de um trator ou outro veículo que lhe desse ajuda.  Quando isso ocorria no período noturno, a situação ficava ainda mais difícil.
Num início de ano com as constantes e fortes chuvas de verão, certo fusquinha verde pertencente ao professor de Português, acabou tendo suas duas rodas traseiras totalmente presas pela lama, bem no meio do caminho. 
Como já estavam acostumadas a isso, as professoras que estavam no carro, arregaçaram as calças, desceram e literalmente patinando no barro, providenciaram galhos e pedras que auxiliassem as rodas a saírem do buraco. 
O leito da estrada estava muito encharcado, pois a chuva já vinha ocorrendo há dias. Era pura lama. A cada tentativa, nova frustração, agravando-se mais ainda a situação. 
Não havia a quem recorrer, pois já passava das 23h e a estrada estava deserta.
É bom lembrar que o telefone celular ainda não existia.
Foi quando o professor de Português que acumulava a função com o sacerdócio, vendo que não havia jeito de livrar seu carro do atoleiro, decidiu pedir ajuda a algum morador da região.
O fusquinha estava parado relativamente próximo à porteira de entrada de um sítio. Via-se a luz muito fraquinha vinda de uma casa, bem distante da porteira.
Sabendo que se chamasse ali da estrada não seria ouvido, o padre resolveu ir até a casa e para isso, teve que pular a porteira que estava trancada. Teve muita dificuldade neste ato já que não era mais jovem e seu sobrepeso era evidente.
Mal havia dado uns 10 passos já dentro da propriedade, quando fortes latidos ecoaram na escuridão.  Com certeza, pela intensidade do som, não se tratavam de poodles, cachorro salsicha ou qualquer outro cachorrinho.
As professoras que haviam ficado no carro, apavoradas, gritaram alertando o padre.  Naquele instante ele já havia literalmente virado nos calcanhares e corria a toda velocidade, de volta à porteira.
Para espanto das mulheres, com um malabarismo inesperado, ele deu um único salto e num piscar de olhos já estava do outro lado da porteira, a salvo na estrada. A dificuldade que demonstrara na ida, desapareceu como que por encanto na volta, tamanha a agilidade nos movimentos.
O barulho todo chamou a atenção do dono do sítio, que a despeito da desconfiança inicial, acabou entendendo a situação ao ver o carro com as professoras na estrada e reconhecendo o padre professor, ainda muito ofegante e sem fala.
Com ajuda de um trator, o fusquinha verde foi retirado do buraco onde se metera e o grupo pode seguir seu caminho.
Toda esta odisseia provocou grande atraso na viagem e já era madrugada quando finalmente chegaram ao destino.
A demora havia alarmado os familiares que se reuniram num posto de gasolina situado logo na entrada da cidade. Estavam prestes a entrarem na estrada quando o fusquinha tomado pelo barro fez sua chegada triunfal.
O difícil foi acreditarem que o padre professor, já próximo da aposentadoria e com bons quilos a mais, ao fugir dos cachorros, havia conseguido pular a porteira com um único salto, num desempenho só observado em atletas profissionais.
Aliás, nem ele mesmo acreditou que tivera seu momento de João do Pulo.
                                                                                     

Santos, 11 de novembro de 2013 



Para as companheiras desta e de outras tantas aventuras na estrada velha de Ipeúna, e em especial, ao inesquecível professor Padre Quirino Volani.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A MENINA CRISTIANE



Sempre que seu nome me vem na lembrança, imediatamente outro nome o acompanha.
Cristiane me traz recordações do profº Arlindo Dias, o grande mestre da Matemática, professor de várias gerações de rio-clarenses.
Também fui sua aluna nos tempos do curso de magistério no “Joaquim Ribeiro”.
Foi nessa época que aprendi a admirá-lo não somente pela competência e amor à profissão, mas também pela atenção e carinho que tinha por seus alunos.
Era enérgico quando necessário, mas tinha um coração que mal lhe cabia no peito.
Anos mais tarde e já formada, tive o prazer de ser sua colega de trabalho na escola “Diva Marques”, onde lecionei Ciências. Pude então compartilhar de momentos muito especiais de sua carreira, num período já próximo da aposentadoria.
Uma tarde, caminhando pelos corredores do “Diva” durante o intervalo das aulas, o profº Arlindo me procurou dizendo-se magoado comigo.
Diante de meu espanto, se apressou na explicação.
Ele havia acabado de conversar com uma brilhante aluna e lhe perguntado, qual era o professor que ela mais gostava.  
Decepcionado ouviu a resposta: ele era o segundo mais querido, pois a professora de Ciências era a primeira.
Essa aluna era Cristiane.
Ambos rimos do fato e da ciumeira despertada, pois parecia que nós professores, estávamos disputando o carinho dos alunos.
O fato é que Cristiane não era somente uma excelente aluna, mas também uma adolescente especial, destacando-se pela meiguice e educação que dispensava a todos.
Décadas se passaram após este fato.
Recentemente graças à internet, reencontrei Cristiane, agora já mulher adulta e mãe.
Pude então constatar que aquela garotinha inteligente e amorosa, é hoje um ser humano realmente especial, tal e qual já demonstrava na adolescência.
O que dizer de uma pessoa que se dedica a amenizar dores alheias, a fazer sorrir crianças de olhos entristecidos pela vida, a espalhar alegria nos momentos difíceis quando a velhice ou  uma doença tira o prazer de viver???
Cristiane com suas roupas coloridas e seu nariz de palhaço, circulando por quartos de hospitais, orfanatos e asilos,  juntamente com sua filha e outros amigos, têm minha grande admiração, meu grande respeito e me enchem de orgulho.
Cris, você faz realmente a diferença neste mundo tão materialista, quando o egocentrismo cada vez mais, vem ditando e impondo suas regras.
Realmente tenho muito orgulho de ter sido sua professora e contar agora com sua amizade.
Parabéns à mãe Cristiane, à filha Marina e ao grupo todo, que planta e colhe sorrisos e amor.

Santos, 06 de novembro de 2013 


Uma homenagem à Cristiane Nogueira, à Marina, sua filha e a todos do grupo.



quarta-feira, 30 de outubro de 2013

"GENTE SEM MÃO PARA DAR" *



Final de tarde de um sábado qualquer.
Chuva fina e constante escorria pela vidraça, desenhando contornos curiosos.  A natureza lá fora parecia adormecida. Mar calmo, abandonado pelas ondas.
Momento convidativo para ouvir alguns CDs especiais para mim.
Nas músicas, ora lentas, ora aceleradas, a MPB cantava solta através das vozes de Chico, Tom,  Gonzaguinha, Adoniran, Elis, MPB 4, Cartola, Nara, Toquinho e Vinícius entre outros tantos. Músicas feitas há décadas, mas que nunca envelhecerão. São mesmo atemporais.
Mentalmente fui acompanhando as letras, velhas conhecidas.
Sempre me espantou e me encantou a delicadeza das poesias contidas nas belas melodias.
Com certeza alguma magia, algum encanto mesmo, domina a alma dos artistas no momento da criação de suas obras.
O som flutuava no espaço, invadindo a alma.
De repente, um ritmo lento que mais lembrava um lamento, tirou-me de um estado meio que de contemplação.  Já havia ouvido esta música outras vezes, mas nunca atentado para detalhes da letra.
Vinícius falava sobre a morte de um vizinho, Alfredo, que se matou de solidão.  Descreveu a situação em que vivia Alfredo e a certa altura ele cantou:
- Gente sem mão para dar.
Eu particularmente nunca havia pensado desta forma, numa solidão tão dolorida e intensa que a pessoa não tem sequer uma mão para dar.  Pessoa, que como diz a letra, é gente que a gente não vê porque é quase nada”.
Creio que todos nós ao longo da vida, já nos sentimos sozinhos em alguns momentos, já sentimos necessidade daquele abraço apertado que diz – estou aqui!
O que sentirá quem vive constantemente esperando este abraço?  O que sentirá quem vive dia após dia numa solidão total, sem atenção de quem quer que seja?
Com certeza já cruzamos com gente que assim se sente, inclusive pela nossa vizinhança, como foi o caso de Vinícius.
E a música continuou:
- Gente com olhos no chão, sempre pedindo perdão.
Envolvidos em nossos pensamentos, em nossos próprios problemas, ou mais objetivamente, com nosso próprio umbigo, não enxergamos estas situações (ou não queremos enxergá-las), e com certeza tratamos tais pessoas realmente como se nada fossem.
São seres para quem muito provavelmente, receber um simples olhar, um simples sorriso, faria toda diferença.
O que dizer então, de um cumprimento e de “uma mão para dar”?
Quantos Alfredos deixamos constantemente passar por nós como se fossem quase nada?  Quantos ainda deixaremos passar?
Alfredo?
Sim, Alfredo... “mas ninguém sabe de quê”.

Santos, 30 de outubro de 2013 

*   Um Homem Chamado Alfredo
Autores: Toquinho e Vinícius de Moraes








domingo, 27 de outubro de 2013

A FUJONA



Naquela época não havia ainda a possibilidade de implantes dentários.
Uma vez perdidos os dentes permanentes o único recurso para substituí-los era a colocação de uma prótese, a chamada dentadura.
Entretanto, por melhor que fosse o resultado, às vezes um ou outro imprevisto acontecia.
Pois não é que justamente um destes lamentáveis imprevistos, aconteceu com ela? Durante um almoço, uma mordida mais forte em um pedaço de carne dura e pronto, a parte inferior da dentadura quebrou-se em duas.
Consultado o protético veio o alívio: havia condições de se restaurar a peça quebrada.  O único senão é que ela ficaria algumas horas sem os dentes.
Para não se expor nestas condições, solicitou auxílio da filha caçula pedindo que levasse a peça ao dentista e a trouxesse imediatamente após ser reparada.  Neste meio tempo ela ficaria reclusa em casa aguardando o serviço ser realizado.
A garota, na casa de seus 7 anos aproveitou a ocasião para usar uma bolsinha nova de ráfia branca que havia ganhado recentemente.  Era bem pequena mas comportava perfeitamente os dois pedaços da dentadura a serem colados. O fecho era constituído por dois pinos que se cruzavam fechando a boca da bolsa. A alça era feita com uma delicada corrente que fazia todo seu charme.
A caminho do protético a garota resolveu brincar com a tal bolsinha e se pôs a girá-la nos dedos enquanto caminhava pelas ruas. 
Girou, girou e girou.
Girou tanto que sem que ela percebesse os pinos se abriram e a dentadura foi projetada para longe.  A garota só se deu conta disso ao chegar ao dentista e não encontrar mais aqueles dentes sorrindo dentro de sua bolsa nova.
Voltou acabrunhada para casa sem saber o que dizer para mãe, mas já esperando uma homérica bronca.
Dito e feito.  Apesar do sol escaldante na Cidade Azul naquele momento um temporal inesperado caiu pelos lados da rua 2. 
Muito difícil foi conter a vontade de rir que os irmãos mais velhos tiveram ao ouvir as cobras e lagartos que a mãe dizia, já muito nervosa e sem os dentes. As palavras saiam com sons diferentes e intercalados por assobios.  Foi preciso segurar o riso pois realmente como se diz hoje, o bicho estava pegando, embora com certeza naquele instante, não pudesse morder.
Encerrada a bronca, o problema persistiu. 
Por onde andaria a dentadura fujona?
Foi quando os dois filhos mais velhos entraram na história convocados com a urgência que a situação pedia, a refazerem o trajeto pelas ruas procurando em todos os cantos, aqueles dentes que sorriam fora de uma boca.
A operação teve início. A menina andava pelo canto da calçada enquanto o irmão andava próximo à guia, olhando a sarjeta.  Teriam que cumprir a missão de resgate a qualquer preço e por isso vasculhavam todo e qualquer pedacinho suspeito de papel para ver se não escondia a peça perdida.
Finalmente após percorrerem algumas quadras, bem em frente a uma quitanda, o menino deu o alerta. 
Ao lado de um caixote velho de madeira cheio de frutas já passadas do ponto, estava a dentadura que alheia à sujeira e em cima de uma casca de banana sorria toda feliz e satisfeita dando a impressão que havia acabado de engolir a fruta.
Por sorte ela se comportara direitinho e não havia mordido nenhum calcanhar desavisado que por ali passara.
Com a missão cumprida a dupla voltou para casa a fim de apaziguar os ânimos, dar um belo banho de espuma na fujona e novamente levá-la ao protético para a devida colagem.  Desta vez o passeio foi feito sem percalços e com toda segurança possível.
Interessante é que esta história inusitada e hilária da fuga, seguida de busca e apreensão de uma dentadura, não podia ser comentada pelas crianças e quando o faziam era sempre com muita reserva, pois mesmo com o passar do tempo o fato ainda despertava a ira da mãe e isso acarretava risco iminente de um grande temporal, onde os raios caiam em todas as cabeças, com ou sem para-raios. 

domingo, 6 de outubro de 2013

AINDA HÁ ESPERANÇA PARA O MAGISTÉRIO?



Não é novidade que há muitos anos o magistério vem sendo ignorado por nossos governantes e que a baixa remuneração está afastando profissionais de gabarito das salas de aula. São justamente os verdadeiros educadores que partem em busca de outras colocações que valorizem e reconheçam suas capacidades.
Diretores de escola convivem com esta situação todos os dias. É um fato real e alarmante.
Vemos constrangidos que para suprir tais lacunas, muitas vezes há necessidade de se contratar candidatos que a despeito de serem portadores de diplomas universitários (em algumas regiões brasileiras nem isso costuma ocorrer), têm posturas totalmente incompatíveis com uma sala de aula repleta de crianças ou adolescentes.
As disciplinas pedagógicas foram trabalhadas de maneira totalmente equivocadas ou até mesmo, não fizeram parte de suas formações acadêmicas.
Atualmente o candidato a professor, antes de tudo, deseja saber o valor que receberá pelas aulas, para que possa fazer seus cálculos e verificar se não acabará pagando para trabalhar. Isto é perfeitamente compreensível.  Geralmente as escolas distantes e mal localizadas são as mais prejudicadas e estão sempre com o corpo docente incompleto.
Não há como deixar de comparar os tempos atuais com a situação que vivíamos há algumas décadas.  Íamos de trem, ônibus, caronas, a pé, mas todo sacrifício era compensado não somente em termos financeiros, mas também pelo retorno gratificante que recebíamos dos alunos e suas famílias.
Muitos lecionavam em escolas que ficavam em sítios ou fazendas distantes e a chegada do professor era sempre motivo de festa.
O receio que tínhamos naquela época, não era sermos surpreendidos por bandidos e marginais, mas sim, encontrarmos cobras ou outros animais peçonhentos que por ventura atravessassem as trilhas entre os canaviais, durante nosso percurso a pé, até a escola.
Anos mais tarde e já contando com a facilidade de transporte que o carro oferece, fui muitas vezes visitar escolas rurais acompanhando supervisores de ensino. 
Em uma destas visitas, meu senso de orientação espacial que é quase inexistente, deixou a mim e a uma colega, totalmente perdidas entre talhões e talhões (espécie de quarteirões) de cana-de-açúcar. Cada trilha que o velho fusquinha branco seguia, acabava num trecho sem saída. 
A tentativa de voltar ao prédio da escola e pedir ajuda também foi infrutífera já que não lembrávamos mais qual era o caminho. Sem bússola, sem GPS , sem celular e com o final do dia já se aproximando, estávamos quase certas que passaríamos a noite dentro do carro e rodeadas por cana.
Enquanto o carro ia e vinha pelas trilhas à procura de uma saída, minha colega rezava no banco do carona. 
Não sei se foram as rezas ou o destino, mas quando já estava quase noite, eis que um cavaleiro surgiu numa das curvas por trás dos pés de cana.   Não era nenhum príncipe em seu cavalo branco, mas foi saudado por nós como se o fosse. 
Muito atencioso e prestativo, foi cavalgando mansamente na frente do fusquinha até nos deixar na porteira da fazenda que dava acesso a uma estrada de terra que nos levaria até a rodovia principal.
Depois deste episódio, adquiri o hábito de fazer um mapa detalhado de cada trajeto até as escolas rurais, com direito a desenhos, esquemas, quantidade de mata-burros e porteiras a passar, tipos de árvores como referências e por aí afora.
A despeito de todas estas dificuldades, era muito, mas muito gratificante mesmo, ter contato com as crianças destas escolas rurais tão isoladas. Representavam o puro retrato da inocência e pureza e assim como suas famílias, valorizavam o trabalho do professor, fato que a maior parte de nossos políticos não faz nos dias atuais.
Será que o magistério voltará a ter num futuro, o respeito e consideração que merece por parte das autoridades municipais, estaduais ou federais? 
Sou bem cética quanto a isso!

Santos, 06 de outubro de 2013. 


Para Sônia, relembrando essa epopeia pelos lados rurais de Itirapina/SP.

sábado, 24 de agosto de 2013

A ENTRADA NOS "ENTA"




À medida que caminhamos pela vida, adquirimos o hábito de olharmos com mais frequência para trás, quer seja para recordarmos algo bom, quer seja para matarmos alguma saudade ou então para vivenciarmos ao menos em pensamentos, momentos marcados por belas emoções.
Isto é até compreensível já que em certa altura de nossa existência, a estrada que se abre à frente terá com certeza menos quilômetros a serem percorridos, do que o trajeto que deixamos para trás.
Noto, entretanto, que perdemos muito do precioso tempo atual justamente nesta parada, neste pit stop, observando o que ficou em cada curva percorrida.
Não sei se por questão cultural ou mesmo social, quando se entra na conhecida fase dos “enta”, reduzimos erroneamente as expectativas de vivenciarmos grandes mudanças ou  grandes transformações.
Nossos olhares já não buscam um horizonte longínquo; contentam-se com o que enxergam até na esquina mais próxima.
Fazendo uma retrospectiva, lembro-me que ao chegar aos quarenta anos passei a recordar com muita frequência, fatos da infância e da juventude, quando então julgava que o mundo poderia ser conquistado com um simples abraço. Talvez inconscientemente em função disso, passei a valorizar muito mais esta época da vida, do que o próprio momento que surgia em meu dia a dia.
Curiosamente dez anos depois, quando completei meio século de vida, as lembranças do que vivi aos 40 anos, mostraram que na verdade em qualquer momento de nossas vidas, sempre haverá novos horizontes a serem explorados e descobertos. Cada tempo tem seu sonho.
Se por um lado recordar nos faz bem, pois não devemos e nem podemos esquecer nossas raízes, por outro lado, este hábito precisa ser bem administrado para que não nos impeça de olhar para frente e não nos tire o direito, a curiosidade e muito menos a emoção da descoberta do que há depois da próxima curva na estrada da vida.
Pelos caminhos vamos colhendo e guardando lembranças, mas sempre em busca de novos sonhos e novas esperanças.



Santos, 24 de agosto de 2013  

sábado, 10 de agosto de 2013

SENHOR ITALO



Mais um dia dos pais se aproxima.
Independente de ser uma figura sempre lembrada, nesta época parece que as emoções ficam mais à flor da pele.
Impossível ver um comercial na TV, propagandas em lojas, mensagens na internet, sem que nossos pensamentos se direcionem ao nosso pai.
As primeiras imagens dele que me vêm à mente, é vê-lo organizando seus papéis em pastas (nossa, como ele tinha pastas!), etiquetando caixas, colando objetos, trabalhando em alguma nova invenção nem sempre útil e fazendo anotações em suas agendas. Aliás, ele tinha agendas de todos os tipos e tamanhos.
Interessante que mesmo muito antes da linguagem internetês existir, era possível ler em sua agenda lembretes como, por exemplo: cortar kbelo, ou então, comprei kfé. Setembro ele anotava assim: 7mbro.
Muito criança ainda, uma de minhas brincadeiras era imitar sua profissão de representante comercial, inventando clientes e fornecedores.  Lembro-me que utilizava nestes momentos, suas já usadas cadernetas quilométricas de viagem da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Eu achava meu pai importante por ter essa caderneta que trazia a foto dele e anotações das viagens feitas.
Um pouco mais crescida, minhas brincadeiras já eram na rua com a criançada da vizinhança.  Nesta fase já comecei a sentir mais sua autoridade e reserva, pois não sentia muita facilidade e liberdade para dele me aproximar. 
Foi na adolescência que sua presença de certa forma, começou a causar em muitos momentos, mais receios do que qualquer outro tipo de sentimento.
Ainda hoje me lembro da dificuldade que era obter seu consentimento para aos domingos, ir ao cinema com amigas, aos 14, 15 anos de idade.
Se o pedido fosse feito no início da semana, a resposta que eu até já sabia de cor seria:
 - Ainda há muita água para passar sob a ponte. 
Caso contrário, se o pedido fosse feito no sábado, a resposta seria:
- De última hora não costumo decidir coisas!
Resultado, nada de cinema com amigas.  Acabei desistindo de pedir-lhe e passei a ir somente com autorização de minha mãe, que como se dizia, “segurava a barra” por mim.
Estes tipos de atitudes acabaram reforçando certo distanciamento dos filhos em relação a ele, pois havia sempre o receio de uma bronca inesperada e muitas vezes, não merecida.
Já adulta, comecei a entendê-lo melhor e descobrir que por baixo daquela armadura invisível que ele vestia, havia alguém que se importava com a família, com amigos, mas que tinha grandes dificuldades em manifestar isto através dos gestos tão comuns, como um abraço ou até um simples aperto de mãos.   
Pude vê-lo emocionado pouquíssimas vezes e mesmo assim, de maneira bem contida.  Talvez, nestas poucas ocasiões, já vendo os filhos adultos, sentiu-se um pouco mais seguro para extravasar sentimentos trancados no peito durante anos.
Interessante que fora do âmbito familiar, ele era divertido com amigos, contador de piadas e ria com muita facilidade.
A armadura que vestia era na verdade sua proteção, sua maneira de não demonstrar emoções e desta forma, manter o que ele entendia ser sua autoridade de pai e de chefe de família. Esta minha interpretação se reforçou com a chegada dos netos, com os quais seu comportamento foi bem diferente do que teve com os filhos.
Aprendi a respeitá-lo e a temê-lo desde a infância. 
Somente na fase adulta é que pude compreendê-lo melhor e admirá-lo mais ainda após sua partida, ao saber de atitudes elogiáveis que tomou e não contou nem mesmo aos beneficiados.  
Este era o Sr. Italo, meu pai.
Esteja onde estiver, desejo-lhe um FELIZ DIA DOS PAIS!

Santos, 10 de agosto de 2013  (Véspera do Dia dos Pais)


domingo, 28 de julho de 2013

CADÊ O BICHO?



O telefone toca e uma voz amiga solicita um favor.
A partir daí se desenvolve um fato que me faz rir ainda hoje.
- Oi, você pode vir em casa matar uma barata para mim?
- Posso ir sim, mas não moramos tão perto assim e até eu chegar à sua casa, a barata já fugiu.
- Não foge não. Ela está presa num parafuso da parede.
- COMO ASSIM???
- Ela está presa no parafuso que segura a prateleira colocada antes de eu mudar para cá.
- Nossa! Isso já faz meses!
- Pois é, ela está presa nesse parafuso há uns 5 meses.
- Mas então ela está morta!
- Não, não está.  Parece que às vezes as anteninhas dela se mexem.
Diante dessa afirmativa municiei-me de toda a coragem que tenho (que nesta situação específica, é diretamente proporcional ao meu tamanho) e me dirigi ao campo de batalha para ver o que realmente estava ocorrendo.
Ela prontamente me mostrou o local do calvário da bichinha. 
Ao chegar mais perto não contive a risada.
A tal barata heroica que sobrevivera meses com abdome perfurado, na verdade era um pedaço de reboco da parede que havia soltado quando um parafuso fora lá colocado.  A única coisa que poderia lembrar uma barata era o formato da cabeça, mas só e apenas isso.
Expliquei-lhe rindo do que se tratava, mas diante de minha reação ela colocou os óculos e chegando mais perto reafirmou que era sim o bichinho pois tinha até duas antenas.
Aproximei-me novamente para ver as tais antenas e aí sim, ri tanto que cheguei às lágrimas.
A pessoa que fixou a prateleira fez um risco a lápis na parede para marcar a altura a ser colocada.  Acontece que a madeira não ficou bem na horizontal, mas sim com uns poucos milímetros fora da marca, justamente nas laterais direita e esquerda do reboco descascado.
Portanto, o que ela chamava de antenas, eram dois pequenos riscos horizontais feitos com grafite na parede.  Com certeza, impressionada, minha amiga olhava de longe e via até movimentos nas ditas antenas.
Tive dificuldades em explicar-lhe o acontecido pois  não conseguia parar de rir, enquanto ela, ainda preocupada com o inseto e sem saber o motivo de minha crise de riso, já gargalhava também contagiada por mim.
O jeito foi pegar sua mão e fazê-la tocar no local para que constatasse que nada havia lá além de buraco e riscos feitos a lápis.
Finalmente foi desfeita toda e qualquer dúvida sobre a existência do obstinado inseto e o velório foi cancelado por absoluta falta de defunto.
                 Com o problema resolvido tomamos um gostoso cafezinho com direito a um brinde por minha imensa bravura – matar o buraco na parede!

Santos, 26 de julho de 2013 

Para Vivian (in memoriam), recordando uma tarde em que choramos de tanto rir. Como nos faz bem chorar de alegria!