segunda-feira, 31 de março de 2014

DEIXE QUE EU ANOTE!




O dia começou bonito. Um domingo ensolarado e agradável para uma viagem.
Lá foram eles estrada afora, rumo à capital, para comemorarem um aniversário com um almoço em família.
O local escolhido, um tradicional restaurante no centro de São Paulo, ainda não estava com muitos fregueses, não havendo necessidade de espera. Tudo nos conformes.
Todos bem acomodados e com os cardápios em mãos, escolhiam os pratos quando o garçom responsável pela mesa aproximou-se dizendo que o pedido já estava sendo atendido.
Foi o primeiro espanto.
- Como assim?  Ainda nem fizemos nossas escolhas! – foi a exclamação que se ouviu.
Mal entendido desfeito e o funcionário se prontificou a anotar o pedido.
Fizeram suas escolhas sem muita demora e um após o outro, calmamente, foram repassando-as ao garçom que as anotava de maneira bem lenta.
Com o serviço concluído, antes de se afastar ele quis fazer uma simples conferência e foi aí que tudo começou.
Apesar das escolhas serem simples e fáceis, ele havia trocado várias delas. Rasurou suas anotações com as devidas correções.
Ao fazer nova conferência, o espanto tomou conta de todos os olhares. Os erros anteriores foram corrigidos, mas novos enganos foram acrescentados.
Lendo novamente bem devagar para mais uma vez fazer as alterações, eis que novas rasuras são necessárias no pedido que a estas alturas, já estava tão riscado que mal permitia sua leitura.
Sugeriu-se então que ele abrisse nova folha para evitar confusões, ideia com a qual ele concordou de imediato.
Entretanto as trocas continuaram e a situação repetiu-se mais duas vezes, fazendo com que todos já se imaginassem passando a tarde toda corrigindo as anotações do funcionário, que justificou seus equívocos esclarecendo que estava ainda sob o efeito de medicamentos que tomara num tratamento dentário.  
             O próprio aniversariante chegou a desconfiar que se tratava de alguma pegadinha de TV e olhou à sua volta procurando câmeras escondidas.
A situação chegou a tal ponto que a paciência de um dos fregueses atingiu o limite e de maneira bem educada, segurou na ponta do bloquinho de pedidos e puxou-o para si prontificando-se ele próprio a fazer as anotações. O funcionário não concordou com isto e segurando fortemente o dito cujo bloco, puxou-o para si.
Nesse momento estabeleceu-se uma situação hilária. O garçom puxava seu bloquinho para um lado e o cliente para outro. Mais um pouco e teríamos uma pequena demonstração de um confronto de MMA.
Obviamente o funcionário foi o vencedor da rápida contenda e manteve consigo as anotações, mas acabou acatando a sugestão do cliente, que compreendendo sua situação de saúde alterada, aconselhou-o educadamente a pedir ajuda para outro garçom.
Finalmente outro prestativo atendente já acompanhado do maître que se desculpava pelo entrevero, solicitou a todos que falassem novamente seus pedidos.
A confusão havia sido tanta, que um dos fregueses enroscou-se ao falar, pois tinha até esquecido qual era seu prato escolhido.
No momento de pedir as bebida, eis que o maître determinou que o primeiro garçom, que era o responsável pela mesa, anotasse as escolhas.
Apesar de temerosos todos pediram suas bebidas e aparentemente o serviço fora feito corretamente. Concluíram, cedo demais, que o efeito dos medicamentos já estivesse mais fraco.
Grande engano.  Ele havia conseguido acertar apenas duas das seis bebidas solicitadas.
       Tendo em vista a falta de concentração e equilíbrio que ele manisfestava, a tragédia anunciada realmente aconteceu. Caminhando pelo corredor entre as mesas, ele acabou esbarrando em um colega que carregava uma bandeja com pratos repletos de alimentos e bebidas.  Com um forte estrondo tudo foi ao chão.  Ainda bem que não caiu sobre ninguém.
       Havia uma sacola de papel no chão sob a mesa, num canto fora da área de circulação, portanto sem atrapalhar a passagem.  Não se soube como, mas o garçom conseguiu tropeçar nesta dita sacola e perder o pouco do equilíbrio que lhe restava.
       Para não cair, apoiou-se na jovem que estava sentada à sua frente, que assustou-se ao receber de maneira inesperada, um forte abraço do garçom. 
Independente de toda confusão e da hilária disputa pelo bloco de pedidos entre garçom e freguês, o almoço foi aprovado por todos e finalmente o aniversário pôde ser comemorado.

Santos, 31 de março de 2014.

sábado, 15 de março de 2014

UM DIA NA REITORIA



Remexendo em uma caixa com papéis antigos, encontrei uma amarelada folha de papel sulfite dobrada em 4.
Curiosa, desdobrei-a e de imediato reconheci minha letra.
O papel originalmente foi usado para datilografar um recibo expedido nos tempos da pós-graduação. Meu texto foi escrito justamente nos espaços em branco deste documento e de maneira bem improvisada.
Há alguns anos uma amiga encontrou este documento datado de 1977 e resolveu  entregá-lo em um de nossos encontros em Rio Claro.
 Nesta ocasião ao iniciar a leitura, veio-me a lembrança de um dia extremamente cansativo, além de totalmente perdido dentro da reitoria da UFSCAR.
Na época nosso orientador do curso respondia pela reitoria da Universidade e se antes já era muito difícil falar com ele sobre as pesquisas, durante este período como reitor, ficou praticamente impossível.
Muitas idas e vindas perdidas de Rio Claro para São Paulo ou para São Carlos, carregando pastas, papéis, cálculos estatísticos e tudo o mais que fosse necessário para análise do andamento das pesquisas.
Nesse dia em especial, realizamos um exercício extremo de paciência que talvez nem monges tibetanos tivessem. 
Tínhamos agendado com antecedência uma reunião com ele logo às 8h daquele dia e para lá partimos bem cedinho, viajando de ônibus para São Carlos.
Este encontro tinha urgência, pois havia relatórios a serem lidos e discutidos para posteriormente serem encaminhados para USP com prazos muito curtos.
Ficamos de plantão na antessala de seu gabinete e de lá não saímos nem para almoçar com receio de nos desencontrarmos dele.
Para passar o tempo e disfarçar o cansaço e aborrecimento, para não falar raiva mesmo pelo desrespeito, comecei a escrever o texto que reproduzo abaixo, mais como um desabafo.
Um dia na reitoria
Abre porta, fecha porta.
Abre porta, fecha porta.
Porta bate, abre porta.
Fecha porta!
Às vezes o movimento fica congestionado e se forma uma pequena fila para passar nesta bendita porta.
Alheias a todas estas agitações, estão duas jovens com os traseiros mais do que amassados e amortecidos, pois estão sentadas há horas, esperando pelo magnífico.
As mesmas pessoas que vieram até aqui no período da manhã, retornam agora e uma coisa esquisita acontece: olham muito para nós; por que será, não?  Elas entram e logo em seguida saem novamente.
E nós duas aqui.....sentadinhas....sentadinhas!
Já esquecemos várias vezes o que viemos fazer aqui.
Abre porta, fecha porta e nada do magnífico chegar para nos atender.
Viemos com frio, passamos calor e já estamos com frio novamente, além de muita fome.
Espero que o ônibus da volta esteja lotado para eu poder viajar em pé, por um motivo mais do que justo: fechou o canal do reto.
Quem aqui estava já foi embora, quem chegou depois já se foi também.
Daqui a pouco só estaremos nós duas e mais ninguém.
Abre porta, fecha porta!
E o magnífico????  Sabe-se lá que fim levou.
Já dissemos bom dia a todos; também já dissemos boa tarde e para finalizar o dia, estamos nos despedindo e dizendo boa noite.
Fim da crônica, mas não final da história, pois são mais de 17h e o magnífico ainda não chegou!
São Carlos, 03 de maio de 1977.


Assim foi mais um dia perdido, dentre tantos que tivemos à espera do magnífico, pois o dia terminou e não conseguimos falar com ele.
Passamos poucas e boas nesta época e tudo em nome das pequenas drosófilas. Mesmo assim, sinto saudades!

Santos, 15 de março de 2014. 


Para Vera, amiga de longa data e que compartilhou momentos bons e ruins nesta época tão complicada da pós-graduação.

quinta-feira, 6 de março de 2014

MÁSCARAS E MASCARADOS



Relendo alguns poemas deparei-me com um intitulado “Máscara” *.
 Embora escrito há alguns anos e num contexto diferente de fatos ocorridos nos dias atuais, o texto me levou a pensar sobre o bom e o mau uso de disfarces na face.
Nestes tempos de máscaras e manifestações, o carnaval chegou trazendo consigo batalhões de novos mascarados que em blocos, tomaram as ruas e avenidas do país ao som de muita música e alegria. As máscaras pretas dos manifestantes foram substituídas, ao menos neste período, pelas coloridas máscaras carnavalescas.
Interessante como as pessoas mudam o comportamento, positiva ou negativamente, quando escondem o rosto. 
Na verdade com a face oculta, o ser humano manifesta o que verdadeiramente tem em seu interior. É justamente quando mais se revela, mais expõe suas vontades, pensamentos e emoções, alegrias ou revoltas. Sem identidade ele não tem receio de julgamentos que possam fazer sobre si.
O não reconhecimento pelos outros gera tal liberdade de ação que libera o mascarado a adotar posturas que com a face descoberta, dificilmente adotaria. Com rosto disfarçado o autocontrole lhe parece totalmente desnecessário.
De cara limpa, como se costuma dizer, é muito mais difícil praticar atos que fujam aos padrões tidos como normais pela sociedade.  Para isso é preciso coragem.
Pensando nesta identidade escondida e amordaçada que pode existir no íntimo do ser humano, ocorreu-me também a presença de outro tipo de disfarce que não espera o carnaval e nem as manifestações populares para ser usado.
São as máscaras invisíveis que muitas pessoas vestem toda manhã quando acordam e as mantém o tempo todo no rosto. 
Algumas pessoas a usam como disfarce de uma infelicidade perene; exibem então um constante sorriso ensaiado que não tem origem naquela alegria espontânea.  São pessoas de almas tristes, que compreensivamente querem ocultar tal fato e até mesmo evitar que isto tenha reflexo junto à família ou amigos.
Há também em contrapartida, muita gente de caráter duvidoso que usa tal máscara invisível para aparentar o que não é verdadeiramente e neste caso, a falsidade é a autora de um roteiro teatral. Às vezes o ator se descuida e deixa a máscara cair no meio do ato, em pleno palco.
Em tempos de máscaras e mascarados, que bom seria (embora muito improvável) se a coragem da cara limpa prevalecesse nos manifestantes e que encontrássemos pelas ruas, somente as tradicionais máscaras carnavalescas, onde um sorrisão aberto e contagiante provocasse na hora outro sorriso como resposta, mas este, surgindo em nossa própria face.


Santos, 6 de março de 2014