Recentemente
ao relembrar antigos carnavais, resgatei de imediato a figura de Adolpho, meu
avô paterno, intimamente associado a estas festas na minha infância.
Com
certeza foi uma pessoa ímpar.
A
primeira impressão que sua figura despertava, era de um certo temor em função
de seu tamanho, pois era bem alto e seu sobrepeso era evidente. Eu, que nunca fui grande, sentia-me menor
ainda a seu lado.
Entretanto,
a despeito deste temor inicial, hoje chego a pensar que aquele enorme físico
era necessário para comportar tanta bondade e abnegação.
Talvez
pela própria educação recebida, não extravasava seus sentimentos distribuindo
beijos e abraços, nem mesmo às crianças. Era bem contido neste aspecto.
Essa
dificuldade em demonstrar fisicamente suas emoções passava quase desapercebida,
já que seu olhar azulado transmitia
clara e abertamente, o que lhe ia na alma.
Era
um olhar franco, puro, carregado de carinho e ternura.
Não
sei se era impressão minha, mas sentia quando criança, que recebia dele uma
atenção especial dentre os netos. Talvez porque fosse a única menina, já que
minha irmã nasceu anos depois.
Chamava-me às vezes de Migila; nunca soube de onde veio este apelido e nem o
por quê.
Totalmente
desprovido de ambição e vaidade, muitas vezes deixava a esposa tremendamente
irritada com a displicência ao se vestir para sair. Ele realmente "não estava nem aí"
para o que os outros pudessem pensar.
Queria
mesmo era se sentir confortável, e assim procedia.
Aos
domingos pela manhã, após a missa, costumava tocar sua flauta
transversal. Era de cor negra e ficava
guardada num elegante estojo forrado com feltro vermelho.
Já
não me recordo se ele tocava bem, mas a cena dele sentado na cama, com os netos
à sua volta, enquanto montava com carinho o instrumento, ficou bem gravada na memória.
Como
sempre acontece com pessoas de boa índole, sua bondade e total falta de
malícia, foram exploradas por outros, mas nem nestas ocasiões ele teve
comportamento agressivo.
Simplesmente
deixava para lá, e tocava a vida como
se nada e ninguém o tivessem prejudicado.
Essa
sua benevolência não era compreendida e muito menos aceita por minha avó, Maria
Luíza, que com seu temperamento forte, ficava indignada quando amigos e até
mesmo parentes se aproveitavam da situação.
O
mais incrível é que ele não se abalava com as broncas que dela levava; cruzava
as mãos nas costas, logo abaixo da cintura, num gesto característico seu, e
saia de perto no maior sossego, deixando-a ainda mais irritada.
Seu
jeito simples e sossegado era sua marca registrada.
Uma
cena diária que muito me divertia, era vê-lo ler jornais.
Lembro-me
bem de suas leituras do jornal O Estado de São Paulo, na loja de meus pais.
Desmontava
o jornal todinho à procura dos assuntos que lhe interessavam. Depois, para
desespero de meu pai que era extremamente organizado, ele dobrava as páginas de
qualquer jeito, à sua maneira, e o jornal ficava lá, todo amarrotado.
E
lá ia embora o Adolpho, tranquilamente, enquanto seu filho visivelmente
alterado, mas sem dizer uma palavra, num total respeito, remontava página por página todo o Estadão.
Adolpho
nem se dava conta disso, ou se dava, não ligava a mínima.
Realmente
um homem bom no sentido exato da palavra.
Ficou
muito abalado com a perda da esposa.
Não
aguentou sua ausência e poucos meses depois, foi ao seu encontro.
Como
bem disse Rubem Alves - "Recordar é visitar de novo aquilo que o coração
guardou".
E
meu coração só guardou coisas boas deste avô!
Onde
quer que esteja, com certeza está em paz e tocando sua flauta.
Um
dia esta Migila lhe encontrará, vô Adolpho.
Até
lá!
Santos,
20 de fevereiro de 2015
Ao
avô Adolpho, in memoriam!