sexta-feira, 10 de agosto de 2012

REMINISCÊNCIAS



A infância vivida há algumas décadas, pouco ou nada tem em comum com o dia-a-dia das crianças desse século XXI.
Sem entrar no mérito a respeito das diferentes realidades, quer sejam sob os aspectos de segurança, familiares ou educacionais, a meninada que brincava nos meados do século passado, desfrutava de espaços para se divertir nas grandes casas, nas ruas e nas praças, livres de maiores receios mesmo sem a presença de adultos.
Em contrapartida recebiam uma rigorosa educação. Acatavam com respeito (muitas vezes com receio) as ordens que lhes eram impostas e pouco ou nada questionavam sobre elas.
As obrigações também existiam desde pequenos e embora contribuíssem para o desenvolvimento da responsabilidade, muitas vezes tinham certa dose de exagero.
Dentre esses exageros vivenciados, um em especial sempre resultava em repreensão logo nas primeiras horas dos domingos.  O dia mal havia clareado (às vezes ainda estava escuro) e alguém lá em casa já levava uma bronca.
Tínhamos, eu e meu irmão, então com idades de 7 e 8 anos aproximadamente, que acompanharmos nosso pai à missa da manhã que era rezada às 6 horas, numa igreja que ficava em torno de 1 km de nossa casa. Fosse inverno, verão, chuva ou mesmo férias, lá íamos os três a pé para a cerimônia da santa missa.
Enquanto eu era rápida para acordar e me arrumar, meu irmão já necessitava de um tempo maior para ficar definitivamente desperto.  Como a cobrança para ser rápido era insistente, ele até que tentava superar seus baixos escores a cada domingo, mas sem muito sucesso.
Assim, em todas as manhãs domingueiras acostumei-me a ir andando rapidamente ao lado de meu pai, olhando de vez em quando para trás a fim de ver lá longe, meu irmão vindo como um autômato. Lembro-me bem que em dias de neblina seu vulto chegava a sumir parcialmente tamanha a distância que ele estava.
Numa certa manhã ele ainda meio dormindo vestira seu terninho e gravata de missa e sem se olhar no espelho, pois não havia tempo para isso, saiu na correria pelas ruas conseguindo chegar quando o padre já estava começando a cerimônia.
Ao olhar o garoto acomodando-se no banco da igreja, o semblante sempre sério do pai acabou se rompendo ao mesmo tempo em que não consegui segurar o riso, coisa que em ambiente que exige silêncio se torna ainda mais difícil. 
Meu irmão estava impecavelmente vestido a não ser por um detalhe: ele havia colocado a gravata de tons escuros, literalmente no pescoço, isto é, acima do colarinho da camisa.  Lembrava Tiradentes com sua corda no pescoço - um perfeito candidato a enforcamento. 
Se normalmente era difícil para nós crianças, nos concentrarmos na missa àquela hora da manhã e ainda rezada em latim, naquele domingo ela foi totalmente perdida pois tivemos ataques de riso o tempo todo.
Era mesmo um exagero essa obrigação de irmos à missa às 6 horas, obrigação essa que perdurou por alguns anos.
Nesses tempos também, os meninos usavam as chamadas calças curtas e somente no início da adolescência, lá pelos seus 11 a 12 anos, é que tinham o direito às suas primeiras calças compridas, fato que era motivo de muito orgulho para eles.
Animado com a ideia, meu irmão atendendo às orientações, começou a tirar suas medidas.  Ocupada com seus afazeres minha mãe ia explicando o que anotar e ele, fazendo uso da fita métrica, marcava os números.   Até que lhe foi pedido medida da altura da calça. 
Rapidamente encostou-se no armário, pegou um lápis e apoiando uma régua sobre o topo de sua cabeça, pediu que fosse verificado se a tal régua estava bem reta. Queria marcar sua altura no armário com perfeita exatidão para poder medi-la, afinal seria sua primeira calça comprida e não poderia ficar curta ou comprida demais.
Em meio à risada geral, a mãe questionou qual modelo de calça ele pretendia: uma comum que chegasse até sua cintura ou uma que lhe cobrisse até a cabeça feito um saco de batatas?
Finalmente as medidas corretas foram anotadas e a primeira calça comprida passou a fazer parte de seu guarda-roupa.
São lembranças resgatadas recentemente junto à tantas outras depois de assistir ao filme “A Guerra dos Botões”.  Ele reproduziu em minha memória outras guerrinhas como da Turma da Rua 2 contra a Turma da Rua 3, mas essa é uma história que ficará para uma outra vez.
Reminiscências perdidas no tempo.

Santos, 10 de agosto de 2012  

sábado, 4 de agosto de 2012

VAMOS ÀS COMPRAS ?




Ser prevenido até que é uma boa atitude desde que esta prevenção seja bem administrada e não parta para o exagero e a mania.
Pois bem, isso ele sempre foi, bem prevenido.  Planejava suas tarefas com tanta organização e antecedência que era até motivo de brincadeiras na família.
Quando ainda trabalhava como representante comercial, viajava de trem pelas cidades da região. Sendo assim, tinha sempre o cuidado de estudar os horários de ida e volta de tal forma que no final do dia estivesse em casa para poder dormir na sua cama.
Entretanto, algumas viagens para cidades mais distantes o obrigavam a dormir em hotel.  Nessas ocasiões, o momento de arrumar sua mala era um divertimento que provocava risos nos filhos e nele próprio.  Com muita antecedência começava seus preparativos separando tudo que levaria, de roupas a sapatos, passando pelos objetos de uso pessoal.  
Sem exagero, a mala ficava pronta três dias antes da viagem que teria um único pernoite em hotel.
Uma cena presenciada pela filha ainda menina, ficou gravada em sua memória: o observou  usando um grande serrote para cortar ao meio, o cabo de uma escova de dente. 
Nos idos anos 50 não era comum ou talvez nem existisse ainda no comércio local, escova de dente pequena ou dobrável, própria para viagem.  Ele havia encontrado uma caixinha que serviria como local para guardar a tal escova.  Aconteceu porém, que essa caixa era pequena.  Ele não teve dúvidas e lançou mão de um imenso serrote para cortar o cabo da escova.
E não é que apesar do absurdo da cena, o resultado foi excelente!  A paciência e o capricho surtiram ótimos resultados e ele feliz, guardou a dita escova na caixinha a ela destinada.
As compras em supermercados nunca foram seu forte e ciente disso, as deixava ao encargo da esposa.  Entretanto quando ficava sabendo de alguma promoção que considerasse imperdível, lá ia ele aproveitar a ocasião, afinal era bom ter um certo estoque em casa para prevenção.
Dentre tantas, duas dessas compras ficaram registradas nos anais da família.
Aproveitando preços bons, ele resolveu comprar 100 quilos de açúcar (em pacotes de 5 kg) de uma única vez, para uma família de 5 pessoas. Quando essa carga começou a ser descarregada na casa, a esposa entrou em choque. 
Como não havia espaço suficiente para guardar tudo aquilo, começou a distribuição a parentes, vizinhos e amigos. Despensa lotada e mesmo assim uma parte ficou num canto no chão da cozinha. 
Houve entretanto, mais um agravante. 
Naquela época o produto vinha em sacos de papel. Com o passar do tempo, o açúcar começou a petrificar dentro dos pacotes.
Sendo assim, cada vez que alguém fosse abrir um deles, tinha antes que pegar o martelinho de carne e dar uma verdadeira surra de pancada no açúcar para quebrar as malditas pedrinhas e só depois, abrir o pacote.  Às vezes de tanto apanhar, o papel acabava rasgando e esparramava açúcar para todos os lados para desespero da esposa e alegria das formigas.
 Desnecessário dizer que as sessões de pancadarias açucareiras aconteceram por meses, meses e mais meses.
A outra inesquecível aquisição, quase resultou em acidente fatal.
Num final de tarde lá foi ele todo lampeiro, às compras novamente. Encheu completamente um carrinho de supermercado somente com latas de óleo.  Como naquele dia não estavam fazendo entregas em domicílio, telefonou para a filha pedindo que ao sair do trabalho passasse no supermercado para dar uma carona a ele e às suas compras.
Quando viu a filha estacionando o carro em frente ao supermercado, começou a puxar o carrinho na rampa de saída do estabelecimento.
Aconteceu que essa rampa tinha uma inclinação bem acentuada e o peso do carrinho carregado com latas de óleo o fez ganhar velocidade.
Por alguns segundos ele chegou a correr mas vendo que fatalmente seria atropelado pelas próprias compras, deu um pinote para o lado abandonando o carrinho, que descendo em quinta marcha e em desabalada carreira rampa abaixo, acabou atravessando a rua e foi parar somente após bater na guia da calçada do outro lado.
A filha e todos que estavam nas proximidades levaram o maior susto.
Por sorte, no momento do ocorrido, nenhum carro estava descendo a avenida, pois fatalmente aconteceria um grave acidente.
Passado o susto, a gargalhada foi geral. A cena lembrou antigos filmes de Chaplin.
Depois do quase acidente e das risadas, já a caminho de casa a filha ficou em dúvida se era mais aconselhável levar junto um cardiologista pois a mãe ao ver toda aquela lataria chegando, provavelmente teria um infarto fulminante.  
Foi a última grande compra.

Santos, 04 de agosto de 2012