terça-feira, 17 de maio de 2011

BRINCANDO DE ESTÁTUA

    





     Absorvida em pensamentos subitamente meu olhar é desviado por um ruído que povoou minha infância.

     Na parede em que vive há tantos anos, o passarinho cuco abre sua portinha e cantando avisa que a vida me espera. 


     Como a cobrar-me uma atitude ele não volta a se esconder naquele ninho de madeira clara e talhada que lhe serve de abrigo. Mantém-se ali, portinha aberta, biquinho aberto, asas prontas para o vôo, mas... silente.


     Os ponteiros artesanalmente trabalhados apontam a hora certa mostrada através de números romanos que já foram mistérios aos meus olhos de criança.


     O passarinho branco inerte em seu galho, me faz pensar que hoje caminho acompanhando os movimentos dos ponteiros da vida.


     Como no relógio, três ponteiros marcam o ritmo de meu dia.


     Um, célere, pulando a cada segundo, carrega consigo minha vida física: meu respirar, meu andar, meu sangue a circular.


     Em outro, mais controlado, seguem meus momentos de decisões, de dúvidas, de opções, de atitudes no dia a dia.


     Minha alma e sentimentos alojam-se no ponteiro mais lento. Com ele seguem pensamentos, angústias, alegrias, esperanças, emoções.


     Às vezes a brisa da vida brinca com o pêndulo e o faz perder sua força. Nesses momentos as emoções giram no sentido anti-horário buscando lembranças e voltando ao passado, supostamente em busca de instantes felizes.


     Cada vez que os ponteiros se alinham no número doze, corpo e alma se preparam para mais um dia. 


     Pergunto- me se há uma forma de parar isso, de dar um tempo, um intervalo mínimo que seja nesse movimento constante de girar, girar e girar. Preciso de uma parada para me reavaliar, para analisar mais atentamente as pessoas e suas atitudes, para rever sentimentos e realmente enxergar a vida como ela é e não como eu gostaria que fosse.


     Preciso voltar no tempo para observar o caminho percorrido e procurar em que canto deixei perdida aquela força, aquela energia que me impelia para frente com velocidade descontrolada mas convicta de estar certa. 

     Hoje não tenho mais certezas. 

     Não há como segurar o pêndulo do relógio da vida como fiz tantas vezes na adolescência, atrasando o tempo oficial no relógio cuco para escapar de uma bronca paterna.


     O ponteiro da alma se arrasta sob o peso de decepções e ilusões perdidas. Seus movimentos são atropelados pelos companheiros que seguem girando no mesmo ritmo que marcou o início de minha existência.


     Do alto de seu galho o passarinho cuco continua firme a me espreitar. Ainda silente, seu olhar parece dizer que não se pode carregar nos braços, vida afora, cada momento vivido, cada mágoa sentida, cada alegria despertada.


     Há que se guardá-los todos na memória da alma para serem resgatados vez ou outra e assim, provocarem um sorriso inesperado no canto dos lábios ou mesmo uma lágrima solitária; nada que venha a deixar o ponteiro mais lento e afete o caminho que se abre à frente.


     Para minha surpresa o cuco canta mais duas vezes, bate as asinhas e com um estalido fecha a porta se escondendo novamente na casinha da parede. 


     Por algum motivo que desconheço, o mecanismo havia enroscado.


     Quem sabe o cuco resolveu brincar de estátua e parar o relógio da vida?


     Quem sabe...?

Santos, outubro de 2010

4 comentários:

  1. Lígia, se posso escolher entre tantas delícias produzidas por você, este é o conto que mais gosto. Quando leio coisas assim, penso até que algum anjo apodera-se da pessoa (no caso, a poeta Lígia) não permitindo que nenhum ruído externo a faça se desviar da mensagem de puro êxtase a ser ali transmitida.
    Não foi o cuco que brincou de estátua não... É você e suas mágicas palavras que nos faz paralisar no tempo para escutar o relógio da vida...

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  2. Obrigada por suas palavras Selma.
    Lembranças e emoções muitas vezes ficam presas na alma e na mente da gente.
    A escrita tem sido um meio muito gostoso para dar vazão a esse turbilhão de sentimentos.
    bjs

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  3. Pelo visto duas poetiza-se de mão cheia! Parabéns para quem estava brincando de estátua! Muito lindo!

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    1. Obrigada pela visita e comentários. Pena que saiu como anônimo.

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