sábado, 28 de abril de 2012

DONA NELLY


Uma notícia vinda de longe causou tristeza.
Embora não nos víssemos há muitos anos senti bastante a partida desse mundo de uma ex-colega de trabalho, muito prestativa, educada e que fora inclusive minha cúmplice em algumas brincadeiras.
Pessoa que trazia um histórico de vida pessoal bem triste mas que não deixava que isso lhe tirasse o sorriso do rosto.  
É assim que me lembro de Dona Nelly, sempre sorrindo.
Como trabalhava na portaria da repartição tinha que ter o que chamamos de jogo de cintura para atender bem a todos, inclusive àqueles que chegavam mais exaltados e nervosos em busca de soluções para seus problemas.
Certa feita entrou em minha sala rindo muito a tal ponto que mal conseguia relatar o fato.  Acabei contagiada com sua risada mesmo sem ter a menor noção do motivo de tanto riso.
Com muito custo contou que uma mãe de aluno estava na portaria e queria fazer uma denúncia. Muito nervosa essa mãe falava alto, gesticulava e mostrando a filha de 7 anos a seu lado, afirmava que o gosto e preferência da menina haviam sido desrespeitados pela professora.  
Segundo a mãe, o motivo de toda a confusão era um par de brincos de bolas feitos com lã branca que a menina usara para ir à aula naquele dia.
A professora havia pedido para a aluna tirá-los ou então sentar-se numa carteira mais atrás, alegando que todas as demais crianças da classe ficavam rindo e se distraindo ao verem o tal balanço dos brincos a cada movimento da cabeça de sua dona que se sentava na primeira carteira.  Justificara o pedido esclarecendo que tais acessórios eram grandes demais para uma menina tão pequena e por isso mesmo chamavam muito a atenção perturbando o andamento da aula.
Mostrando a criança com os brincos, a mãe indignada dizia que eram bonitos e adorados pela filha. Acusava a professora de ter má vontade para com a menina.
Sem parar de rir Dona Nelly pediu-me que olhasse a cena da extremidade de um corredor que ficava a uma boa distância de onde estavam mãe e filha.   
Não deu outra – voltamos para o interior da sala rindo muito.
Naquela razoável distância e por conta da iluminação, vimos somente os dois vultos não sendo possível ver as feições dos rostos, entretanto, aqueles dois brincos saltaram às nossas vistas. Eles sim, eram perfeitamente visíveis. Com certeza eram bem maiores que bolas de tênis e balançavam escandalosamente ao lado da cabeça da criança.
Realmente um grande exagero principalmente se comparado ao tamanho da menina. Na hora lembrei-me de uma frase que meu pai dizia: “Gosto não se discute, se lamenta”.
Não lembro mais o final dessa história já que o caso foi repassado para o responsável pelo plantão naquele dia, mas com certeza Dona Nelly sofreu para ouvir as reclamações iniciais da mãe sem deixar escapar uma risadinha sequer a cada balanço dos “mimosos brinquinhos”.
Creio que agora há mais sorrisos no céu.
Fique em paz Dona Nelly.

Santos, 25 de abril de 2012  

terça-feira, 24 de abril de 2012

PEDACINHOS DE FELICIDADE



Diante de si a porta aberta esperando uma atitude.
Sentada na cama permanece assim um tempo, apenas observando as roupas penduradas, os objetos arrumados, alguns livros ali esquecidos.
No momento em que afasta algumas peças depara-se com a caixinha amarelada, cuidadosamente colocada em um canto não muito visível.  Não mexia nela há tempos e uma sensação de aconchego a invade ao vê-la assim de repente, sem que estivesse a sua procura como em outras tantas vezes.
Com cuidado a recolhe em seu colo, mas antes de abrir aperta-a contra o peito como se quisesse aproximá-la mais do coração.
O mundo lá fora para, seu mundo para e todos os sentidos se concentram no conteúdo daquela caixinha amarelada, que ela sabe tão bem de cor e salteado.
Poucas coisas ali se encontram, mas cada uma tem sua história para contar.
São histórias carregadas de lembranças que uma vez tocadas, trazem de imediato o passado ao presente com uma força tal que a temporalidade deixa de existir.
Nada de valor material ali se encontra.  Um marcador de livros, pedaços de uma fita de cetim amarela, uma medalhinha de honra ao mérito, um vidrinho vazio, alguns bilhetes e cartas de ex-alunos, papéis de embalagens de chocolates cuidadosamente dobrados, uma caneta.
Pensamentos livres, soltos e leves revolvem o sótão da memória numa ansiedade tal como se estivessem na expectativa de presenciar ali, naquele momento, o desenrolar de cada história contada pelos pequenos objetos.
Pelas ruas e esquinas de sua vida cruzara com todos os tipos de emoções. Algumas lhe marcaram a alma, outras não deixaram nem cicatrizes.
Aprendera que a felicidade e a paz de espírito são bem mais fáceis de serem encontradas na simplicidade dos gestos de ternura, na cumplicidade do olhar, no abraço amigo. E agora nesse instante, os objetos tão simples e guardados há tantos anos lhe proporcionam no presente, a mesma felicidade e a mesma paz sentidas no passado distante quando foram protagonistas de momentos importantes em sua vida.
A felicidade decididamente é atemporal.
Pega separadamente cada objeto um a um, revive com carinho cada emoção, agradece a oportunidade de ter vivido aqueles momentos e sente-se plena.
Após um tempo, sentindo a alma aquecida e ainda com um sorriso nos lábios, recolhe novamente cada peça ao interior da caixa amarelada.
Guarda com cuidado seus pedacinhos de felicidade!

           Santos, 24 de abril de 2012. 

domingo, 15 de abril de 2012

"QUEM PARTE LEVA SAUDADES, QUEM FICA SAUDADES TEM"

Partidas, chegadas, despedidas e reencontros.
Estes são momentos nos quais a emoção descarrega toda sua intensidade. As lágrimas fazem desenhos nas faces emoldurando sorrisos ou desencadeando prantos. 
Toda carga emocional geralmente bem controlada, simplesmente transborda e extravasa em situações que anunciam rupturas ou reencontros.
Esse sentimento de bem querer entre as pessoas é algo que vai além, algo que extrapola o grau de parentesco.  São laços que se formam e se estreitam com o passar do tempo graças à sintonia de pensamentos, de desejos, de expectativas, de maneiras de enxergar a vida. 
           Independente da presença física e do tempo de afastamento, esses laços se mantém firmes e apertados mesmo que as almas manifestem a "vontade de estar perto, se longe ou de estar mais perto, se perto".*
Partidas e Chegadas é um programa de TV que foca exatamente o comportamento das pessoas diante dessas situações. 
Assistindo algumas vezes nota-se que qualquer que seja a situação social, o sexo, a raça e a crença, os sentimentos que aproximam as pessoas são muito intensos e as levam do pranto ao riso e do riso ao pranto em segundos.
A ansiedade vivida por aqueles que aguardam um reencontro é extremamente contagiante. Eles mal conseguem responder às perguntas da entrevistadora. No instante em que a pessoa aguardada aparece, há festa na tela e também no coração do telespectador que silente ficou na torcida aguardando os abraços que de tão apertados mais parecem laços.
Na situação inversa quando é a despedida que se faz presente, a tristeza estampada claramente nas faces mostradas pelo programa se estende além do vídeo e atinge aquele desconhecido que acaba compactuando com a angústia alheia. A ruptura lhe dói como se fizesse parte daquela situação.
Nestes tempos modernos diante de uma sociedade tão materialista, egoísta e que não se preocupa mais com o próximo, constatar que entre as pessoas ainda há espaços para sentimentos puros desprovidos de quaisquer segundas ou terceiras intenções, nos passa uma sensação de esperança, de alívio e de crença de que a essência da alma humana ainda não foi corrompida.

Santos, 15 de abril de 2012  

*Monólogo de Orfeu – Vinícius de Moraes

domingo, 1 de abril de 2012

ÁGUA QUE PASSARINHO NÃO BEBE



Uma mensagem recebida contendo um arquivo com materiais escolares que já caíram em desuso, lhe trouxe lembranças de um fato que literalmente quase a fez cuspir fogo.
Naquele dia estava sem carro e olhando o relógio considerou que havia tempo suficiente para ir a pé até uma escola que não era tão distante. Organizou o material de trabalho que usaria na reunião com os professores e sem maiores atropelos pôs-se a caminho. 
Nos primeiros quarteirões percorridos começou a achar que a distância não era afinal tão pequena e que havia sido má ideia ir a pé.  Estava quente demais e quase não havia sombras nas calçadas que lhe protegessem ao menos um pouco dos raios solares que queimavam a pele.
Na metade do percurso, suando demais e já sentindo o peso do material que carregava, conformou-se em continuar caminhando já que naquela “altura do campeonato”, não compensaria chamar um táxi.
Com passos cada vez mais lentos por causa do cansaço e do calor, chegou ao local da reunião quase se arrastando. Finalmente teria um pouco de sombra sobre sua cabeça!
Afoita e com a boca e garganta totalmente secas, entrou na sala onde os professores já a aguardavam fazendo um grande burburinho.
Antes mesmo dos cumprimentos formais, perguntou a uma funcionária onde havia água para beber. Solícita a jovem apontou para uma mesa no canto da sala onde havia alguns equipamentos pedagógicos, uma bandeja com vários copos de vidros e um galão branco ao lado.
Enquanto ela se dirigia até a tal mesa, uma professora veio ao seu encontro no intuito de lhe mostrar um trabalho que estava desenvolvendo.  Tentou ser educada e dar atenção à pessoa que lhe falava mas na verdade naquele momento, só imaginava ter em suas mãos um gigantesco e transbordante copo com água.
Ainda ouvindo as explicações da professora abriu rapidamente o galão e virou-o enchendo um copo até a boca. Fez isso com tanta pressa que quase derramou o líquido sobre a mesa.
Ato contínuo entornou o copo em sua boca dando vários e grandes goles, bebendo com avidez aquele líquido que ansiava por tomar. 
Foi quando sentiu que o mundo parou de repente!
Sentiu uma imensa queimação que começava na boca, descia pela garganta e revirava o estômago. Chegou a achar que seus olhos iriam saltar para fora das órbitas enquanto tossia sem parar. Lágrimas escorriam em seu rosto.
Sem conseguir falar, viu a expressão de pavor na face da professora à sua frente que não entendendo o que havia acontecido, perguntava insistentemente se estava passando mal.
A essas alturas várias pessoas já estavam até lhe abanando.
Passados alguns segundos, sua respiração voltou ao normal e ela aos poucos se recompôs. Pegou novamente o galão que estava ao lado da bandeja de copos, abriu-o e cheirou seu conteúdo.  
Era álcool puro, puríssimo! 
O galão branco que estava junto aos copos na bandeja, na verdade era galão de álcool que havia sido deixado ali de maneira irresponsável por alguém que o havia usado no equipamento chamado mimeógrafo* que estava na outra ponta da mesa. O galão com água estava na verdade dentro da geladeira.
As primeiras palavras que lhe vieram à mente ainda com os olhos lacrimejantes são impublicáveis mas as que acabou falando foram:
- Proibido acender fósforo ou isqueiro perto de mim.
Somente nesse momento é que as demais pessoas se deram conta do que havia acontecido e claro, não apareceu o insensato que havia deixado o galão ao lado dos copos. Sugeriram-lhe que bebesse água em seguida, mas ela se recusou ao lembrar que o álcool iria aquecer a água e aí sim acabaria cuspindo fogo.
Foi assim que ela até então abstêmia convicta, acabou caprichando em seu début tomando logo de vez, grandes e bons goles de puro álcool !

Santos, 31 de março de 2.012  



Instrumento utilizado para fazer muitas cópias de papel escrito ou com desenhos. Usado principalmente para fins escolares até o início da década de 1990.