quarta-feira, 31 de março de 2021

O VOO DO GARFO


 


Não há a menor dúvida no tocante às diferenças existentes nas maneiras como os pais educavam seus filhos no século passado e como o fazem atualmente.

Isto é perfeitamente compreensível, saudável e esperado visto que o mundo está em constantes mudanças influenciando a tudo e a todos, incluindo claro, o aspecto comportamental.

Não precisamos retroceder muitos anos para observarmos tudo isso; basta compararmos nossa infância à infância vivida por nossos avós e até mesmo pais. 

Independente da época, a educação, o respeito e as atitudes de um modo geral, sempre devem nortear a preocupação dos pais no preparo de seus filhos para um futuro digno e honesto. São virtudes que jamais ficarão obsoletas.

Uma das mudanças mais evidente é com certeza o fato de que as crianças e mesmo adolescentes, deixaram de ser considerados seres sem direitos à voz e à opinião.

No passado era muito comum e perfeitamente normal as crianças serem proibidas de participarem de um grupo de adultos conversando.   Eram mandadas para o quarto ou então para brincarem em outro lugar.

Com o progresso acentuado e acelerado vieram as preocupações com a segurança e a partir daí as crianças começaram a permanecer mais tempo dentro de casa e as brincadeiras de rua tão gostosas foram morrendo aos poucos.

Criança é e sempre foi muito viva e esperta. Embora nós adultos às vezes as subestimemos, suas cabecinhas trabalham e captam toda e qualquer mensagem ao seu redor.

Diante disso foi inevitável que os pequenos começassem a fazer valer sua voz e vez no mundo adulto.  Aplaudo isso mas sem descartar em nenhum momento as virtudes acima citadas: respeito e educação. 

Lá pelos meados dos anos 1950 estávamos vivendo o início dessa transição mas com fronteiras ainda bem fechadas entre adultos e seus filhos em muitas famílias.

Tomando-me como exemplo tenho claro na memória o dia a dia que observava na casa de algumas amigas cujos pais eram mais liberais e mentalmente fazia comparações com meu próprio cotidiano.  A despeito da atenção e cuidados que sempre existiram, nossas opiniões pouco ou nada valiam na infância.

Na época essa comparação mexia muito comigo mas hoje compreendo perfeitamente pois os pais repetiam nos filhos, a severidade com que foram educados.

Todo este preâmbulo se justifica para o relato que faço a seguir.

Desde pequenos recebemos responsabilidades quer na casa comercial que meus pais mantinham, quer em casa nos afazeres domésticos.  Claro que eram serviços adequados às crianças mas a obrigatoriedade era exigida sempre.

Enquanto meu pai sempre se controlou e nunca gritou e nem levantou as mãos para os filhos (é bem verdade que ele mal conversava com as crianças), minha mãe sempre assoberbada com tarefas domésticas e com o trabalho também na papelaria da família, tinha seus momentos de nervoso e explosão instantânea principalmente quando fazia as tais dietas alimentares buscando perder peso.

As crianças já conheciam quando ela estava nestes momentos (que é bom esclarecer, não eram frequentes),  e até os associavam ao picles que ela fazia e comia muito nestas ocasiões, além de um vestido bonito, de tons cor de bispo com traços pretos que coincidentemente sempre usava quando estava irritada com algo.

Nestas ocasiões sabíamos que todo cuidado era pouco pois a explosão por qualquer  resposta atravessada ou serviço deixado de cumprir, resultava num susto grande e correria.

E foi assim que num dia após o almoço domingueiro quando cada filho estava desempenhando sua tarefa na cozinha (enquanto ela lavava a louça, uma secava, outra guardava e ele arrumava a mesa), que o garoto deve ter dito  ou feito algo que a desagradou terrivelmente.  Não me recordo mais qual foi a falha mas acredito que deva ter sido grande pois a reação dela foi  instantânea.

Da cozinha onde estava lançou o garfo grande de frituras na direção do menino que estava há uns 8 metros dela.  O dito cujo garfo voador foi direto na direção do rosto.  A grande sorte foi que o reflexo dele estava em dia e no mesmo instante em que se abaixou a peça colidiu com a porta da geladeira descascando a pintura no local da batida.

Gritos das meninas ao verem aquela peça cortando os ares em busca de uma vítima.

Por alguns segundos o susto paralisou a todos inclusive à mãe, menos ao garoto que neste meio tempo "pernas para que te quero" e  voou sumindo da vista por várias horas.

Claro que o arrependimento bateu em seguida e ela agradeceu o insucesso do garfo voador, mas a lembrança do fato está bem nítida em minha memória e na memória dele com certeza.

Aliás é impossível esquecer o fato pois o garfo ainda me acompanha e está devidamente guardado na gaveta de talheres de minha cozinha, trazendo seus dentinhos tortos como uma constante lembrança do dia em que voou mesmo sem ter asas e sem ter brevê.

 

Santos, 31 de março de 2021

 

Ao Edo e seu bom reflexo e ao garfo também, que afinal resistiu ao tempo e ainda presta serviços, mas sem voar......rssss