quarta-feira, 27 de março de 2024

AFEIÇÃO E INDIFERENÇA

 


          A cada ano que passa, e já se vão várias décadas desta minha existência, mesmo sem planejar ou desejar, acabo fazendo comparações buscando analogias e diferenças em meu modo de pensar e me relacionar com o mundo, durante todo este tempo.

        Observo alterações muitas vezes significativas.

        Na infância e se estendendo até o início da fase adulta, prestes a entrar no mercado de trabalho, é inerente e esperado que todos tenhamos muitos objetivos a alcançar, sonhos a realizar, sempre buscando um crescimento pessoal e também sucesso na vida profissional.  

      Claro que estas realizações quando atingidas com resultados altamente positivos, trazem consigo na esteira, facilidades para aquisição de bens de um modo geral. Isto é perfeitamente compreensível.

     Estamos, porém, presenciando atualmente uma verdadeira febre que costuma se chamar  ostentação. 

       Pessoas ainda bem jovens que por um ou outro motivo conseguem se destacar dentre as demais (não entrarei no mérito deste fato), sentem uma necessidade enorme em exibir bens adquiridos, passeios caros, vida de luxo, numa ambição sem limites.

       Nada contra.  Cada um faz de sua vida o que lhe apraz, mas sinto uma vulnerabilidade enorme nesta tal ostentação, pois se deseja um objeto apenas para tê-lo, sem significado maior além da pura exibição.

       Entretanto, voltando à análise de como enxerguei a vida nestes anos todos, observo que apesar de nunca ter sido consumista,  o tempo me tornou mais seletiva ainda.

       É a tal dicotomia: afeição e indiferença.

      Não é qualquer fato ou coisa que me atraia ao ponto de desejá-la ardentemente. 

      Noto que as coisas que mais me falam à alma, mais tocam meus sentimentos, além é claro, das pessoas com as quais convivo, são objetos que carregam em si, uma parte de minha história de vida.

     Assim é com uma mesa que está na família há muitos anos, uma jarra de porcelana, plantas que minha mãe cuidava com carinho, uma roupa que usei numa ocasião de plena felicidade, um local onde estive na companhia de pessoas que amo, um casa onde morei por anos e que me recorda momentos bons vividos em cada cantinho dela, assim como as pessoas que a compartilhavam.

      Já me disseram, que coisas são coisas, assim como Chico César canta na música “De uns tempos para cá”. * 

      Claro, concordo que coisas são meramente coisas. Não é necessário ser discípula de Platão ou Sócrates para entender isso.

       Reafirmo, entretanto, que aprendi através da vivência de décadas, que há coisas que são relevantes, justamente por nos trazerem lembranças boas, lembranças queridas que por si só, são excelentes companheiras. 

        Por estas eu tenho afeto, e me orgulho disso!

Santos, 27 de março de 2024


*Música: DE UNS TEMPOS PARA CÁ

Autor: Chico César

De uns tempos pra cá

Os móveis, a geladeira

O fogão, a enceradeira

A pia, o rodo, a pá

Coisas que eu quis comprar

Deu vontade de vender

Pra ficar só com você

Isso de uns tempos pra cá

De uns tempos pra cá

O carro, a casa, o som

Tv, vídeo, livros, bom

O que em tese faz um lar

Admito eu quis comprar

Começo a me arrepender

Pra ficar só com você

Isso de uns tempos pra cá

Coisas são só coisas

Servem só pra tropeçar

Têm seu brilho no começo

Mas se viro pelo avesso

São fardo pra carregar

Coisas são só coisas

Servem só pra tropeçar

Têm seu brilho no começo

Mas se viro pelo avesso

São fardo pra carregar

De uns tempos pra cá

O pufe, a escrivaninha

Sabe a mesa da cozinha?

Lençóis, louça e o sofá

Não precisa se alterar

Pensei em me desfazer

Pra ficar só com você

Isso de uns tempos pra cá

De uns tempos pra cá

Telefone, bicicleta

Minhas saídas mais secretas

'To pensando em deixar

Dê no que tiver que dar

Seu amor me basta ter

Pra ficar só com você

Isso de uns tempos pra cá

Coisas são só coisas

Servem só pra tropeçar

Têm seu brilho no começo

Mas se viro pelo avesso

São fardo pra carregar

Coisas são só coisas

Servem só pra tropeçar

Têm seu brilho no começo

Mas se viro pelo avesso

São fardo pra carregar


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

NOSSAS ORIGENS

 

       


Desde pequena ouvíamos nosso avô paterno e também nosso pai, falarem sobre Lucca, uma cidade italiana na região da Toscana de onde nos fins do século XIX, nossos bisavós Angelo e Rosa vieram para o Brasil em busca de novas oportunidades.

Um cunhado de Angelo já havia feito esta mesma viagem e isso estimulou o casal a imitá-lo.

Com eles veio o primogênito Casemiro. Os demais filhos nasceram no Brasil.

Lembro-me que avô Adolpho dizia que quando ainda era bem menino a família retornou à Lucca, mas optaram mesmo por fixar residência no Brasil, especificamente em Rio Claro/SP, e para lá mudaram-se definitivamente após um tempo na cidade italiana.

Ficava evidente o desejo de Adolpho e também de meu pai, de conhecerem esta cidade italiana, mas naqueles tempos era realmente um sonho impossível devido às dificuldades na viagem, dificuldades na comunicação e financeiras obviamente.

Cresci com uma Lucca imaginária na mente. 

Sempre fui muito interessada em História, e em se tratando da história de minha família então, esse interesse triplica! Com certeza isso se passa também com os demais membros da família.

Anos se passaram e com eles quase um século e meio desde a vinda do casal ao Brasil.

Nos meses finais de 2023 começamos a esboçar e programar uma possível realização deste sonho.

Graças ao empenho de minha cunhada Selma e a colaboração de todos, em especial de meu sobrinho, passo a passo fomos planejando tão almejada viagem.

No último mês do ano, precisamente em dezembro, o que me parecia inviável aconteceu.

Aproveitando nossa estada em terras lusitanas onde atualmente meu irmão e família residem, partimos com destino a Lucca, passando no caminho pela bela Milão e a indescritível Florença. Infelizmente as duas mais novas da família, Carolina e Luíza, não puderam nos acompanhar em função de compromissos profissionais.

Já na estrada a visão dos primeiros outdoors com propagandas do comércio na cidade, foram nos deixando cada vez mais ansiosos. A despeito de já termos visto reportagens e fotos dos locais, tudo nos parecia a mais pura novidade. 

Era como se estivéssemos entrando verdadeiramente no túnel do tempo.

Com auxílio da tecnologia e acesso a determinadas informações, conseguimos chegar à Igreja San Cassiano a Vico.

Primeira parada e primeira emoção.

Foi justamente nesta igreja que em 6 de outubro de 1892, Angelo Cerri desposou Rosa Marcucci.

O ponto de partida de nossas origens estava ali, diante de nossos olhos.

Uma igreja antiga como já esperávamos, simples e pequena, mas que causou em mim e com certeza aos demais da família, uma emoção imensa.

Diante do altar singelo e ao mesmo tempo grandioso para nós, a fantasia criou asas e não foi difícil imaginar o casal ali, iniciando nossa família.

Como gostaria que meu avô e meu pai estivessem conosco ali, naquele momento. 

Seria mais sublime ainda!

De posse de informações em documentos antigos, conseguimos também passar pelas ruas onde ambos moravam quando solteiros. Tudo era novidade, tudo era aperto no coração.

Permanecemos em Lucca por 3 dias e assim pudemos caminhar por locais onde nossos antepassados com certeza passaram, talvez já ansiosos e munidos de coragem planejando a travessia do Atlântico em busca de novas vidas.

Uma cidade medieval que conserva suas tradições e ao mesmo tempo caminha rumo ao futuro. Um lugar extremamente prazeroso onde cada cantinho nos conta uma história interessante.

Impossível não sentir que nossos bisavós nos acompanharam durante todo este passeio.

A visita a Lucca e a entrada na igreja San Cassiano a Vico, representam fatos dos mais marcantes em toda esta minha existência de mais de 7 décadas.

Retornamos às origens e vivenciamos nosso passado.

Sensação inesquecível!



Santos, 05 de fevereiro de 2024.



Obs: Meus agradecimentos a todos da família e em especial à Selma e ao Luís Fernando.





                                           Igreja San Cassiano a Vico - Lucca - Itália



                                   Sobrado da família Cerri - Rua 3 esquina da av. 8 - Rio Claro/SP
                                                          Ano: 1936

                              Ainda não havia nascido o último neto: Sérgio Francisco Cerri

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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

PACIÊNCIA ORIENTAL


            É conhecida por todos a enorme paciência oriental, até com os menores detalhes de nosso cotidiano.

                Claro que há exceções, mas via de regra, tal fato se confirma.

              Há casos nos quais o próprio indivíduo foca nessa paciência, e mesmo considerando algum fato fora dos padrões lógicos, faz com que seu consciente aceite a situação sem se estressar.
                
                Há alguns anos, sem querer,  pus à prova a tão decantada paciência oriental.

            Hospedava em minha casa, já há alguns dias, duas jovens, sendo uma delas descendente de japoneses.

                Tudo transcorria tranquilamente até o momento em que decidi fazer creme de milho com frango, para servir no almoço.

            Quem me conhece bem, sabe que, como se diz, "me viro" na cozinha, mas não posso ser considerada expert quando o assunto é culinária. 
        Haja vista o caso do bacalhau com batatas ao murro, que deve estar ainda bem claro na memória da família. Isto porque segui à risca o nome do prato e após cozidas, dei um senhor murro na batata que praticamente virou pelo avesso e entrou em coma profundo. Diante do estrago na primeira, as demais batatas tiveram sorte e sobreviveram, pois receberam uma leve pressão, como deveria realmente ser.

            Pois então, voltando ao creme de milho, coloquei todos os ingredientes no liquidificador e liguei.
 
            Passados alguns segundos, tive que me afastar para atender outra necessidade, e desliguei o aparelho.

              Ao voltar à cozinha, liguei o utensílio e na hora houve um estrondo que provocou a quebra do copo plástico. 

              Ato contínuo, todo o material que estava sendo trabalhado, escorreu pelo balcão, esparramou no chão e a maior parte caiu dentro da gaveta de talheres que estava aberta bem na frente de todo o sinistro.

              Sujeira ampla, total e irrestrita.

            Eu havia deixado uma colher dentro do copo plástico e não me lembrei dela ao ligar o aparelho.

           Enquanto eu acudia o balcão e o chão, minha hóspede sansei prontamente pegou o porta-talheres com tudo dentro, e o levou para a pia, começando a lavar cada peça. 

        Sem que ela percebesse minha presença bem próxima a ela, a ouvi falar várias vezes para si mesma:
            - Por que alguém que mora sozinha precisa ter tantos talheres assim na vida?

            Repetiu umas três vezes, como que querendo convencer a si própria, de tal necessidade.

            Não pude me conter e cai na risada.

        Eu havia conseguido acabar, ao menos momentaneamente, com a paciência oriental de minha hóspede.

        No final da história sai no lucro, pois não achei outro copo plástico que servisse no aparelho e acabei ganhando um liquidificador novinho.


Santos, 13/09/2023

1. Para Lia, renovando os agradecimentos pela grande ajuda.

2. Os talheres me acompanham há anos, pois todos foram adquiridos por minha mãe, quando a família era mais numerosa.



 

domingo, 10 de setembro de 2023

EM STAND BY


 

        Sempre gostei de ler algumas tirinhas divertidas de jornais como charges, caricaturas, cartuns, etc. 

        Desde criança lembro que ao pegar a revista O Cruzeiro que existia na época, ia direto para a última página procurar a criação de Péricles: O Amigo da Onça.

        Ainda na infância fui fã também de  revistas em quadrinhos como Luluzinha, Bolinha, Pato Donald, Zé Carioca, e toda a turma Disney. 

        Com um pouco mais de idade passei a me interessar somente pelas tirinhas satíricas que eram publicadas no jornal O Estado de São Paulo que meu pai assinava na época, e outros jornais que me caiam nas mãos, às vezes de maneira meio velada, como o famoso jornal O Pasquim.

        Impossível esquecer a diversão que era ler as histórias de Graúna, Bode Orelana, os fradinhos, e  toda a criação de Henfil.

        No Estadão lembro, dentre outras, de  Mutt e Jeff e a ótima Calvin e Haroldo (criação de Bill Watterson). Esta última já em meados da década de 80.

                Acompanho até hoje esta dupla formada pelo garoto e seu tigre de pelúcia. Os temas são sempre atuais pois são extemporâneos e abordam amizade, família, escola, etc.

        Sempre há algum comportamento dos personagens, que além de nos fazer rir, acaba por nos lembrar de algum fato da nossa própria realidade.

        Assim aconteceu há poucos dias quando ao ler na internet a tirinha desta dupla, lembrei-me na hora de uma grande saia justa que passei por ter atuado exatamente como Calvin fez na tirinha, ou seja, demonstrar expressão de interesse mas deixar a mente livre e pensar em outras coisas diante de alguém com uma conversa que não nos agrada em absoluto.

        Sempre ao final da tarde eu e outra professora tomávamos um ônibus da antiga frota José Alexandre Jr, para irmos de Rio Claro a Ipeúna, pois lecionávamos nesta cidade no período noturno.

        O ônibus era muito velho e tremendamente barulhento.  A estrada a ser percorrida também não ajudava em nada, pois era de terra batida, cheia de buracos e mal conservada.

        Minha companheira de viagem era uma daquelas pessoas que falavam muito e sem parar. Havia um agravante: falava muito baixinho, em som quase inaudível.

        Quando o ônibus chegava no ponto, eu sempre procurava entrar antes dela e buscava um assento onde só havia um lugar vago.  Isso era proposital para evitar o falatório pelos 20 Km de viagem.

        Às vezes eu não tinha sorte e acabávamos indo no mesmo banco.

        Comecei então a usar um recurso que eu mesma chamava de stand by.  Ficava olhando para ela demonstrando interesse, mas minha mente viajava por outros recantos. Mesmo que eu estivesse a fim de escutá-la, era muito difícil pois todo o barulho no interior do veículo cobria totalmente a voz fraquinha dela.

        Certa vez passei um grande constrangimento. 

        Ela contava seus casos e estava sentada ao lado da janela aberta. Eu balançava a cabeça como se estivesse concordando com tudo, mas sem ter a menor ideia do assunto.

        Até que de repente percebi que ela esperava uma resposta minha. Conclui erradamente que  tinha que concordar e falei com toda a ênfase possível:

        -  Sim, é claro que sim!!! Qualquer um sabe disso!

        Na mesma hora seu semblante transformou-se numa carranca, e enquanto fechava a janela do ônibus, disse em alto e bom som:

        -  Por que não me avisou? Bastava ter me pedido para fechar a janela!

        Só neste momento entendi que ela havia me perguntado se o vento estava incomodando.

        Nunca soube se a reação brava dela foi por ter considerado minha resposta malcriada e agressiva, ou por ter captado que eu não estava prestando a mínima atenção na longa  história que me contava. 

        Apesar do climão que ficou, acabei saindo no lucro pois irritada com minha maneira de responder, não abriu mais a boca até o final da viagem.

        Deste dia em diante achei por bem encerrar minha temporada de stand by, mas de certa forma foi até desnecessário, pois minha acompanhante também passou a procurar sempre um banco com um único lugar para sentar.


Santos, 10 de setembro de 2023


domingo, 2 de julho de 2023

PALAVRAS CERTAS NAS HORAS CERTAS


A conhecida expressão “palavra certa na hora certa”, nem sempre acompanha momentos delicados e muitas vezes preocupantes que vivenciamos no dia a dia.

Muitas vezes profissionais de diferentes áreas acabam derrapando nas palavras, por assim dizer, ao se dirigirem às pessoas às quais estão prestando atendimento.

Talvez isso ocorra por falta de bom senso, falta de ética, falta de respeito ou simplesmente pura falta de educação mesmo.

Quando menos esperamos ouvimos uma afirmação ou simples comentário que nos deixa em estado de alerta sobre o que está acontecendo ou prestes a acontecer.

Assim ocorreu com ele minutos antes de uma cirurgia de catarata ao ouvir do médico uma pergunta que o deixou preocupado.

Já na mesa de cirurgia e prestes a passar pelo procedimento, escutou a seguinte  indagação que lhe causou grande ansiedade:

- É plano de saúde ou particular?

O motivo de tal pergunta naquele exato momento provocou-lhe mal estar de imediato, pois já imaginou, não sem razão, que haveria diferença no atendimento entre uma e outra situação.

Pergunta feita em hora totalmente inadequada.

Durante uma entrevista de emprego, a responsável pelo setor de RH quis saber o que a candidata mais adorava na vida, mas por vergonha e constrangimento nunca havia contado a alguém..

Diante da postura pouco confortável que notou na jovem, ela reforçou a pergunta de maneira insistente.  Acabou por desistir diante da negativa recebida seguida da afirmação que tal pergunta era desnecessária, ofensiva e invasiva demais.

Ainda no campo da oftalmologia, outra situação de total falta de bom senso foi vivenciada pela jovem senhora, ainda na casa de seus 40 e poucos anos, durante uma consulta sobre a possibilidade de uma cirurgia para correção da miopia. 

Foi desaconselhada pelo médico alegando que pela idade dela, logo provavelmente teria problemas de catarata e então não convinha fazer o que ela desejava pois seria trabalho perdido. Entre chocada e decepcionada com o comportamento do profissional, retirou-se incrédula com a falta de tato do mesmo.

É necessário haver cuidado e bom senso com as palavras dirigidas aos que buscam uma solução para seu problema. 

Ao mesmo tempo que elas podem aliviar quem as escuta, se forem mal colocadas podem ocasionar danos maiores que os próprios problemas.

"As palavras voam, e às vezes pousam". Cecília Meirelles


Santos, 02 de julho de 2023.

 

quinta-feira, 8 de junho de 2023

TIO CARLOS

                                                    Estação ferroviária de Rio Claro/SP
         

                                       Sabe aquela pessoa que só ao pensar nela, já ficamos sorrindo?
                                   Assim era tio Carlos, irmão de minha avó paterna.
                                  Sempre muito elegante, não saia sem vestir um terno, colete, gravata, e muitas vezes chapéu e guarda-chuva.
                                  Morava com sua mãe viúva em Jundiaí onde tinha seu trabalho na antiga ferrovia da cidade.
                                 Era uma festa para os sobrinhos-netos quando vinha a Rio Claro na companhia da mãe ou sozinho, visitar a família.
                                 Era risada garantida.
                                 Muito piadista se divertia contando fatos engraçados acontecidos com ele ou com amigos. Às vezes até representava a cena.
                                 Não lembro de tê-lo visto sério ou preocupado. Seu semblante era sempre alegre.
                                 Uma de suas peripécias mais conhecidas ocorria nas viagens de trem de Jundiaí a Rio Claro, quando sua mãe não o acompanhava.
                                 Tinha muita facilidade para dormir e assim que o trem partia, ele literalmente "apagava" como se diz. Dormia a viagem inteira.
                                  Por várias vezes aconteceu dele não acordar quando o trem estava parado na estação de Rio Claro, mas sim, quando o comboio já estava partindo seguindo viagem.
                                    Aí então, assustado, pegava sua malinha e esperava chegar até na porteira da Avenida 8, quando a velocidade do trem ainda não era muita. Ato contínuo jogava a bagagem e dava o que ele chamava de salto mortal.
                                   Caia sempre "catando coquinhos" e terminava a queda completamente de quatro, sobre pedregulhos e terra.
                                    Apesar do susto ainda assim ficava feliz, pois afinal suas irmãs moravam perto desta porteira e isto o poupava de maiores caminhadas. Chegava esfolado, arranhado e com o terno sujo, mas gargalhando do fato.
                                    Certa vez durante umas férias escolares em São Paulo, passei uns poucos dias hospedada no apartamento de seu irmão Antônio, juntamente com minha tia e seu filho.  Tio Antônio, é bom que se esclareça, também era brincalhão e divertido.
                                    Saímos a pé os quatro (eu, tia, primo e tio Carlos) para passearmos pelo centro da cidade, hoje chamado de centro velho. A certa altura do passeio, tio Carlos precisou separar-se do grupo. Combinamos o reencontro às 17h bem na esquina de uma grande loja de departamentos chamada Mappin.
                                    Já nos primeiros anos da década de 1960, a região era movimentadíssima.
                                    Atrasamo-nos um pouco e ao chegarmos ao local combinado, havia tanta gente na calçada que não conseguíamos enxergar tio Carlos, que era de pequena estatura e bem magro.  Chegamos a pensar que São Paulo inteira havia combinado de se encontrar naquela esquina.
                                    Assim que ele nos avistou, tentou se aproximar e se fazer ouvir, mas sem sucesso. Não teve dúvidas: abriu seu enorme guarda-chuva e agitando-o começou a ensaiar uns passos de dança.
                                    No mesmo instante formou-se uma roda de pessoas perto dele e isto nos chamou a atenção, facilitando o reencontro. 
                                    Quando parou a tal dança e fechou seu guarda-chuva, houve quem na improvisada plateia lhe pedisse para continuar, mas ele educadamente declinou.
                                    Em plenos anos 60 tio Carlos, como se diz nos dias atuais, "causou" na famosa esquina do Mappin. 
                                    Infelizmente seus últimos tempos de vida foram de muito sofrimento.
                                    A despeito disso, e já em outra dimensão,  creio que continue a fazer sorrir quem dele se aproximar.  
                                    Tio Carlos, as gerações mais novas não o conheceram, mas saiba que suas histórias estão perpetuadas na família.


Santos, 08 de junho de 2023

A Carlos Ribeiro, recordando sua alegria e espontaneidade.
                                    

sexta-feira, 3 de março de 2023

ANOS DOURADOS DE ESTUDANTE

 


                    Talvez seja sina de professora ou apenas um pouco de saudosismo mesmo, mas o fato é que as lembranças dos tempos escolares vira e mexe surgem nos pensamentos trazendo sempre sorrisos.
                    Uma foto encontrada em rede social, um comentário feito por um nome conhecido mas já há muito tempo sem contato, ou até mesmo um fato corriqueiro, já me remete aos anos dourados de estudante.
                    Nos quatro primeiros anos do hoje chamado Ensino Fundamental praticamente não havia crianças que faziam bagunças em sala de aula.
                    Lembro-me apena de uma que por ser extremamente irrequieta, fez com que certa vez a professora olhando para um crucifixo que havia na parede acima da lousa, dissesse algo que provocou meu imaginário:
                    - Essa aluna tira até Cristo da cruz.
                    Em minha cabeça de 7 anos fiquei o resto da aula olhando a todo momento para a cruz para ver se Cristo ainda continuava lá ou se já havia descido.
                    Já nos anos finais do Ensino Fundamental, o chamado Curso Ginasial, as classes eram mais numerosas e mistas proporcionando momentos hilários provocados por alunos mais espirituosos, expansivos, criativos e até ousados.
                    O Instituto de Educação Estadual "Joaquim Ribeiro" em Rio Claro/SP sempre foi uma escola muito respeitada e procurada. Para ingressar em suas turmas era necessário ser aprovado no chamado Exame de Admissão que fazia uma triagem da clientela, exigindo bastante estudo.
                    A competência dos mestres quer no tocante à bagagem cultural, didática e manejo de sala de aula eram evidentes, a despeito da classe ser mais ou menos agitada.
                    Às vezes quando o volume de vozes se elevava durante a aula, apenas com um estalo de dedos a professora de Português, Ivanira Bohn Prado, conseguia o silêncio novamente e na sequência continuava sua explanação num tom de voz bem calmo.
                    É bem verdade que um ou outro professor mantinha a disciplina através do uso de recursos que causavam preocupações e porque não dizer, medo mesmo nos alunos.
                    Assim era por exemplo nas aulas de História com o professor Barros e suas temidas chamadas orais dissertativas e de improviso.
                    Esse mesmo professor ficou em estado de choque quando em uma classe mais adiantada e em plena aula, um grupo de alunos já famosos por suas "artes" pulou as janelas da sala de aula que davam para a rua 6 e fugiu da escola. Tudo isso diante do olhar perplexo do professor.
                    É bom que se registre que a despeito do que aprontassem, nunca faltaram com respeito aos mestres e colegas. Era simplesmente molecagem pura.
                    Coincidentemente uma parte deste mesmo grupo de arteiros pelo fato de terem sido reprovados, foram matriculados em minha classe no ano seguinte. E obviamente continuaram com suas estripulias.
                    Certa feita na volta do intervalo entre as aulas quando quase todos alunos já estavam em suas carteiras, dois deles decidiram não deixar um outro da turma entrar na classe.
                    Para isso ficaram pressionando a porta pelo lado de dentro enquanto o terceiro a esmurrava.  Como não teve sucesso resolveu dar o que se costuma chamar de uma “voadora” e bateu forte com os dois pés na madeira.
                  Com um forte estrondo a porta foi arrancada do batente e ele, a porta e os dois que a seguravam foram para o chão diante do espanto e depois das gargalhadas do resto dos alunos.
                   Obviamente a suspensão aplicada pelo diretor foi imediata.
                   Em outra ocasião durante a aula de Português com a professora Marili, cada estudante fazia um relato sucinto de um livro que havia lido.
                    De repente sem aviso prévio enquanto o colega comentava sobre Vidas Secas de autoria de Graciliano Ramos, o rapaz sentado à minha frente levantou-se de supetão e sem nada dizer saiu da sala diante dos olhares assustados. Voltou em seguida carregando dois copos cheios de água.
                    Ao sentar explicou para a professora com toda a calma, que só aguentaria ouvir o relato do livro até o final se tivesse água por perto. Risos de todos inclusive da professora.
                    Um fato que muitos ex-alunos devem lembrar ocorreu durante um desfile cívico pelas ruas centrais em comemoração se não me engano, ao aniversário da cidade.
                    A escola se apresentou com quase a totalidade de seus alunos. As meninas formavam os primeiros batalhões e na sequência vinham os rapazes.
                    Todos passaram bem comportados em frente ao palanque das autoridades, mas ao virarem a esquina da rua 4 com avenida 1 os meninos começaram a cantar em alto e bom som enquanto marchavam:
                    - Pise sem dó que a cera é Dominó.
                    Tratava-se de um comercial que havia na TV na época, onde um grupo de crianças marchava e cantava esta trilha sonora pisando num chão bem brilhante.
                    Aquele vozerio só foi aumentando ao longo da avenida 1 sem que ninguém conseguisse conter. Acompanhei de perto pois fazia parte do último batalhão feminino.
                    No dia seguinte a mídia escrita e falada, estupefata, criticou severamente o fato.
                    Um conhecido e admirado locutor da antiga Rádio PRF2 leu uma crônica condenando veementemente os rapazes.Fui lembrada há pouco que o título da crônica foi: RÉDEAS. 
                    Só pelo título já dá para se ter uma ideia do conteúdo escrito pelo saudoso jornalista Ribeiro Mancuso.
                    Como não havia a possibilidade de se identificar quem cantou e quem não cantou, a direção da escola decidiu suspender todos os meninos por 3 dias, e para que as salas de aula não ficassem muito vazias, tal suspensão foi de maneira intercalada entre os números ímpares e pares.
                    Eu particularmente não considerei na época e muito menos agora, o fato tão grave como a imprensa noticiou.  O desfile já estava na fase final, próximo à área de dispersão. Foi uma brincadeira da rapaziada, ousada é verdade, que provocou muito riso em toda a assistência. 
                    Já nos anos finais de estudo no "Ribeiro" durante o curso de Magistério, éramos 40 jovens, todas mulheres, que nos seus 16, 17 anos espalhavam vivacidade, energia e muitos sonhos. A turma foi a mesma nos três anos do curso, fato que tornou ainda mais forte a amizade entre todas.
                    Não me lembro de nada muito fora do normal além de um certo pandeiro que por diversas vezes foi ao chão durante uma aula de Psicologia, fazendo muito barulho.  Por sorte o professor Dr. Rubens, que era bem irônico, às vezes até sarcástico, levou o fato na brincadeira. Lembro que ele se referia a um suéter bem colorido que uma aluna usava com frequência, como blusa psicodélica, termo em moda naqueles anos do movimento hippie.
                    Achávamos esse professor excelente, mas ele nos lembrava fisionomicamente o personagem criado por Péricles, O Amigo da Onça, que era publicado na revista O Cruzeiro.
                    Não havia bagunça propriamente dita, mas sim conversas, muiiiiiitas conversas entre as garotas, principalmente nas proximidades de bailes na cidade quando então aos sábados (naquela época havia aulas aos sábados) qualquer folguinha que houvesse entre as aulas, já era motivo para serviços de manicure, de cabeleireiro, troca de ideias sobre modelos de vestidos, etc.
                    Sem querer comparar já que os tempos são nitidamente outros, mas já comparando, as estripulias que vivemos entre amigos nos tempos escolares, jamais desrespeitaram qualquer pessoa, fosse da administração da escola, professores ou colegas.
                    Eram mesmo puras travessuras que nos fizeram rir e ainda me fazem rir ao lembrá-las.
  

Santos, 2 de março de 2023.

A todos amigos, ex-colegas e professores da época do Grupo Escolar "Marcello Schmidt" e Instituto de Educação Estadual "Joaquim Ribeiro" - 1959 a 1969 - Rio Claro/SP

Foto da década de 1960 na sala dos professores do IEE "Joaquim Ribeiro" - encontrada na internet.  Desconheço a autoria da mesma.                



terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A CUBA DA PIA


                   Os seres humanos são mesmo muito díspares.

Cada um tem sua personalidade,  costumes, temperamentos e ….…manias.

Há que se ter respeito, empatia e muito jogo de cintura para que a convivência seja tranquila quer seja entre familiares, amigos, ou até mesmo desconhecidos.

Na casa moravam apenas mãe e filho. 

Ela com temperamento bastante autoritário. Ele dependente emocionalmente dela desde a infância.

Uma pessoa da família moradora em outra cidade foi convidada para um churrasco com amigas.  Sendo assim viajou para o interior a fim de participar deste encontro e ao mesmo tempo aproveitar para fazer uma visita na casa onde moravam a mãe e o filho acima citados.

Chegou no meio da manhã e justamente no dia em que a funcionária da casa havia faltado.  Foi então lhe solicitado (talvez o termo certo fosse…ordenado) que providenciasse um almoço rápido à base de ovos. 

Não se furtou a isso  embora não dispusesse de muito tempo, pois considerou a idade da dona da casa.

Feitos os pratos ambos  almoçaram e já na sequência ela começou a lavar as louças, enxugá-las  e guardá-las (era o costume da casa), sempre seguindo as instruções ditadas. Mãe e filho permaneceram sentados perto só observando o serviço. 

Olhando no relógio a visita constatou que já estava bem atrasada para o encontro com as amigas.

Passou o rodinho de pia e a secou com o pano determinado.

Rapidamente correu até o quintal e  pendurou o pano no varal.

Ao voltar para a cozinha ouviu num tom bem reprovador a fala da dona da casa

- Aqui nós secamos a cuba. Você não a secou!

Por um instante a visita pensou em ignorar tal cobrança, mas voltou correndo ao quintal, trouxe o dito cujo pano, secou a dita cuja cuba e voltou a colocá-lo no varal.

Feito isso achou por bem retirar-se antes que outra ordem lhe fosse dada já que estava bem atrasada para seu compromisso.

O mais curioso da história é que esta visita também tem o costume de enxugar a cuba da pia em sua casa, só não o fazendo na ocasião em função da pressa necessária no momento.


“Mania é coisa que a gente tem mas não sabe porquê”*...



Santos, 28 de fevereiro de 2023.


* Música: MANIAS - compositores: Celso Cavalcanti e Flavio Cavalcanti.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

ELA E O UBER


 

        Acreditando ou não em horóscopos, há dias nos quais as coisas ficam tão complicadas que acaba-se dando uma olhada nas previsões do dia.

        Na verdade há criaturas que por si só atraem tanto rolo que acabam por desenvolver estratégias que sempre lhes mostram ao final de toda a confusão, uma saída até benéfica e porque não dizer, honrosa.

        Assim é e sempre tem sido a vida dela.

      Com a mesma facilidade que se vê metida em rolos, ela sempre acha uma saída.
        
        Aproveitando as férias resolveu passar uns dias na praia já que adora o sol, o mar e passear.  
        Ah esqueci: adora comprinhas também. Em outra cidade sempre encontra novidades que de repente se tornam extremamente necessárias a ela e portanto impossível não comprá-las, claro que em suaves parcelinhas no cartão.

            A saúde desta vez a obrigou a dar uma pequena parada nos passeios. 

        Pelos sintomas que se apresentavam, ela até já sabia a provável causa, mas como a cura exigia antibióticos, viu-se obrigada a ir em uma unidade de pronto atendimento a fim de passar por consulta e, de posse da receita, poder adquirir o remédio necessário. 

    Já era noite e a chuva chegou com muita intensidade, alagando rapidamente certos locais da cidade.

        Consulta feita e após ser medicada, de posse da necessária receita, prontamente acionou o UBER para retornar à casa, mas com objetivo de no caminho parar em uma farmácia para já comprar o medicamento necessário.

        A chuva incessante dificultou tal chamado até que um motorista a atendeu. Para complicar um pouco mais a situação, infelizmente havia o aviso que tal pessoa tinha problemas de audição e fala.  

        Em dúvida resolveu cancelar a chamada pois não teria como solicitar a tal parada numa farmácia.  Com certeza não conseguiria se fazer entender.

        Outra ligação para o UBER e novamente o mesmo motorista atendeu. Não teve outra opção a não ser de novo cancelar.

        A estas alturas já estava necessitando ir ao banheiro já que a infecção urinária diagnosticada estava exigindo isso urgentemente.

        Correu para se aliviar e logo em seguida tentou novamente o UBER,  mas sem sucesso já que pela situação de forte chuva poucos carros estavam disponíveis.
        A não ser, ...a não ser novamente o senhor com problemas de audição.

        O jeito foi dar um tempo maior até que finalmente conseguiu que um outro motorista a atendesse.

        Ela e sua acompanhante instalaram-se no veículo, com a corrida já paga.  Foi quando solicitou ao rapaz que passasse em uma farmácia no caminho para que ela rapidamente comprasse o medicamento.  Para mostrar a necessidade urgente de tal fato, relatou inclusive o diagnóstico que o médico lhe deu.

        O motorista atendeu prontamente e parou logo em seguida em uma drogaria, mas para complicar mais ainda, não encontrou ali o remédio necessário.
        Educadamente o UBER deslocou-se então a outra farmácia que ele mesmo escolheu já que ela desconhecia qualquer outro estabelecimento nas redondezas.

        Sua acompanhante ficou no interior do carro enquanto ela desceu  apressadamente.

        Aconteceu porém que por normas internas a balconista teve que digitar seu cadastro e para isso fez muitas perguntas desnecessárias, só faltando perguntar se ela tinha unha encravada.

        Nervosa com a demora, sua acompanhante que na verdade estava atuando como refém,  não sabia o que falar para o motorista já que calculam que a demora foi superior a 20 minutos.   Sentada silenciosa no banco traseiro, olhava preocupadíssima pela janela esperando e torcendo para que tal situação se resolvesse logo, enquanto via aflita que o rapaz deixava de atender uma chamada atrás da outra  perdendo vários passageiros.

        Por muita sorte de ambas e claro, pela gentileza e excelente educação do motorista, ele não se exaltou e nem falou em ir embora deixando-as para trás e muito menos levando uma como refém.

        Finalmente em casa ambas puderam relaxar e contar o sucedido explicando o motivo da confusão e de tanta demora para o retorno.

        Como os passeios ainda continuam, é bem provável que novas situações inusitadas lhe aconteçam, o que não causará espanto algum em quem já a conhece muito bem.

Santos, 12/01/2023

Para Carol e Nanci, com os agradecimentos pelas muitas risadas que nos proporcionaram.