quarta-feira, 13 de setembro de 2023

PACIÊNCIA ORIENTAL


            É conhecida por todos a enorme paciência oriental, até com os menores detalhes de nosso cotidiano.

                Claro que há exceções, mas via de regra, tal fato se confirma.

              Há casos nos quais o próprio indivíduo foca nessa paciência, e mesmo considerando algum fato fora dos padrões lógicos, faz com que seu consciente aceite a situação sem se estressar.
                
                Há alguns anos, sem querer,  pus à prova a tão decantada paciência oriental.

            Hospedava em minha casa, já há alguns dias, duas jovens, sendo uma delas descendente de japoneses.

                Tudo transcorria tranquilamente até o momento em que decidi fazer creme de milho com frango, para servir no almoço.

            Quem me conhece bem, sabe que, como se diz, "me viro" na cozinha, mas não posso ser considerada expert quando o assunto é culinária. 
        Haja vista o caso do bacalhau com batatas ao murro, que deve estar ainda bem claro na memória da família. Isto porque segui à risca o nome do prato e após cozidas, dei um senhor murro na batata que praticamente virou pelo avesso e entrou em coma profundo. Diante do estrago na primeira, as demais batatas tiveram sorte e sobreviveram, pois receberam uma leve pressão, como deveria realmente ser.

            Pois então, voltando ao creme de milho, coloquei todos os ingredientes no liquidificador e liguei.
 
            Passados alguns segundos, tive que me afastar para atender outra necessidade, e desliguei o aparelho.

              Ao voltar à cozinha, liguei o utensílio e na hora houve um estrondo que provocou a quebra do copo plástico. 

              Ato contínuo, todo o material que estava sendo trabalhado, escorreu pelo balcão, esparramou no chão e a maior parte caiu dentro da gaveta de talheres que estava aberta bem na frente de todo o sinistro.

              Sujeira ampla, total e irrestrita.

            Eu havia deixado uma colher dentro do copo plástico e não me lembrei dela ao ligar o aparelho.

           Enquanto eu acudia o balcão e o chão, minha hóspede sansei prontamente pegou o porta-talheres com tudo dentro, e o levou para a pia, começando a lavar cada peça. 

        Sem que ela percebesse minha presença bem próxima a ela, a ouvi falar várias vezes para si mesma:
            - Por que alguém que mora sozinha precisa ter tantos talheres assim na vida?

            Repetiu umas três vezes, como que querendo convencer a si própria, de tal necessidade.

            Não pude me conter e cai na risada.

        Eu havia conseguido acabar, ao menos momentaneamente, com a paciência oriental de minha hóspede.

        No final da história sai no lucro, pois não achei outro copo plástico que servisse no aparelho e acabei ganhando um liquidificador novinho.


Santos, 13/09/2023

1. Para Lia, renovando os agradecimentos pela grande ajuda.

2. Os talheres me acompanham há anos, pois todos foram adquiridos por minha mãe, quando a família era mais numerosa.



 

domingo, 10 de setembro de 2023

EM STAND BY


 

        Sempre gostei de ler algumas tirinhas divertidas de jornais como charges, caricaturas, cartuns, etc. 

        Desde criança lembro que ao pegar a revista O Cruzeiro que existia na época, ia direto para a última página procurar a criação de Péricles: O Amigo da Onça.

        Ainda na infância fui fã também de  revistas em quadrinhos como Luluzinha, Bolinha, Pato Donald, Zé Carioca, e toda a turma Disney. 

        Com um pouco mais de idade passei a me interessar somente pelas tirinhas satíricas que eram publicadas no jornal O Estado de São Paulo que meu pai assinava na época, e outros jornais que me caiam nas mãos, às vezes de maneira meio velada, como o famoso jornal O Pasquim.

        Impossível esquecer a diversão que era ler as histórias de Graúna, Bode Orelana, os fradinhos, e  toda a criação de Henfil.

        No Estadão lembro, dentre outras, de  Mutt e Jeff e a ótima Calvin e Haroldo (criação de Bill Watterson). Esta última já em meados da década de 80.

                Acompanho até hoje esta dupla formada pelo garoto e seu tigre de pelúcia. Os temas são sempre atuais pois são extemporâneos e abordam amizade, família, escola, etc.

        Sempre há algum comportamento dos personagens, que além de nos fazer rir, acaba por nos lembrar de algum fato da nossa própria realidade.

        Assim aconteceu há poucos dias quando ao ler na internet a tirinha desta dupla, lembrei-me na hora de uma grande saia justa que passei por ter atuado exatamente como Calvin fez na tirinha, ou seja, demonstrar expressão de interesse mas deixar a mente livre e pensar em outras coisas diante de alguém com uma conversa que não nos agrada em absoluto.

        Sempre ao final da tarde eu e outra professora tomávamos um ônibus da antiga frota José Alexandre Jr, para irmos de Rio Claro a Ipeúna, pois lecionávamos nesta cidade no período noturno.

        O ônibus era muito velho e tremendamente barulhento.  A estrada a ser percorrida também não ajudava em nada, pois era de terra batida, cheia de buracos e mal conservada.

        Minha companheira de viagem era uma daquelas pessoas que falavam muito e sem parar. Havia um agravante: falava muito baixinho, em som quase inaudível.

        Quando o ônibus chegava no ponto, eu sempre procurava entrar antes dela e buscava um assento onde só havia um lugar vago.  Isso era proposital para evitar o falatório pelos 20 Km de viagem.

        Às vezes eu não tinha sorte e acabávamos indo no mesmo banco.

        Comecei então a usar um recurso que eu mesma chamava de stand by.  Ficava olhando para ela demonstrando interesse, mas minha mente viajava por outros recantos. Mesmo que eu estivesse a fim de escutá-la, era muito difícil pois todo o barulho no interior do veículo cobria totalmente a voz fraquinha dela.

        Certa vez passei um grande constrangimento. 

        Ela contava seus casos e estava sentada ao lado da janela aberta. Eu balançava a cabeça como se estivesse concordando com tudo, mas sem ter a menor ideia do assunto.

        Até que de repente percebi que ela esperava uma resposta minha. Conclui erradamente que  tinha que concordar e falei com toda a ênfase possível:

        -  Sim, é claro que sim!!! Qualquer um sabe disso!

        Na mesma hora seu semblante transformou-se numa carranca, e enquanto fechava a janela do ônibus, disse em alto e bom som:

        -  Por que não me avisou? Bastava ter me pedido para fechar a janela!

        Só neste momento entendi que ela havia me perguntado se o vento estava incomodando.

        Nunca soube se a reação brava dela foi por ter considerado minha resposta malcriada e agressiva, ou por ter captado que eu não estava prestando a mínima atenção na longa  história que me contava. 

        Apesar do climão que ficou, acabei saindo no lucro pois irritada com minha maneira de responder, não abriu mais a boca até o final da viagem.

        Deste dia em diante achei por bem encerrar minha temporada de stand by, mas de certa forma foi até desnecessário, pois minha acompanhante também passou a procurar sempre um banco com um único lugar para sentar.


Santos, 10 de setembro de 2023