quarta-feira, 1 de outubro de 2025

JULIANA SERZEDELLO



    A tarde caminhava para sua despedida e alguns raios de sol ainda teimavam em iluminar a Rua 2, na então calma e tranquila cidade de Rio Claro/SP na década de 1960.

    Em nossa antiga casa meus pais apoiados no parapeito existente na área de entrada, olhavam o movimento naquele final de tarde.

    Ao lado deles, eu ainda adolescente, também apreciava aquele término de dia.

   De repente um carro de coloração alaranjada, não me lembro bem se era Renault Dauphine ou Gordini,  estacionou na calçada do lado oposto. De seu interior saiu uma família que até então desconhecíamos.Eram os pais e quatro crianças. Na sequência todos entraram em uma casa distante apenas alguns metros de onde estávamos.

    Era a família Serzedello que chegava de mudança para nossa cidade.

    Com o passar dos dias os contatos com os vizinhos começaram e de imediato a reação de todos foi altamente positiva. 

    O pai, professor doutor Alcides Serzedello, iniciava seu trabalho na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro, atual UNESP.

    D. Lydia, sua esposa, pessoa extremamente educada e seus quatro filhos logo ganharam a simpatia da turma da Rua 2 como costumávamos nos identificar.

    Naqueles tempos, anos finais da década de 1960, ainda havia a possibilidade de crianças brincarem livremente na rua. Foi assim que Juliana e mais tarde Lélia, tornaram-se amigas de infância de minha irmã.

    Era comum vê-las juntamente com outras amigas de idades próximas, como Maria Inês e Fátima, correrem pelas calçadas em suas brincadeiras no início de cada noite.

    Lembro-me bem que nesta época uma das modas para as meninas era usarem várias pulseiras de plástico duro, todas bem coloridas. 

    Juliana e Lélia tinham estes acessórios.

    Este detalhe memorizei graças a um motivo especial.

    Minha irmã nem sempre tinha autorização para estar na rua brincando. Vez ou outra recebia, devido a algumas traquinagens, o castigo de ficar em seu quarto sem encontrar as amigas.

    O desespero maior dela era justamente ficar presa em casa enquanto ouvia o barulho característico das pulseiras chacoalhando nos braços das meninas enquanto corriam na rua durante as brincadeiras de pega-pega. Ouvir aquele som e não poder estar junto às amigas, era mesmo o pior castigo para a menina.

    O tempo passou e só ampliou o bem querer de todos em relação à família Serzedello. 

    Os pais, além de suas atividades diárias, também eram bem atuantes na comunidade desempenhando várias funções filantrópicas; os filhos crescendo e sempre demonstrando muita educação, responsabilidade e gentileza.

    Graças às redes sociais pude retomar o contato com as meninas, agoras mulheres, mesmo morando há anos em outra cidade e portanto, distante da minha querida Rua 2. 

    Na verdade pelo que lembro a única pessoa que continuou a morar naquela quadra foi justamente Juliana. Todos os vizinhos antigos mudaram-se e muitas casas comerciais surgiram na região, pois o centro da cidade se expandiu.

    Hoje logo pela manhã, recebi a notícia da partida de Juliana.

    Foi um susto! 

    Há pouco tempo trocamos mensagens. Como sempre foi gentil e delicada, comentando sobre o recente falecimento de Luiz, pessoa de meu relacionamento. Eu desconhecia qualquer problema mais sério com Juliana.

    Ao receber a notícia de sua partida veio de imediato a lembrança daquela tarde em que a família chegara de mudança para nossa rua!

    Muita tristeza com sua partida Juliana!

    Com certeza será luz onde quer que esteja, pois aqui entre nós sei que iluminou a vida de muita gente.

    Siga em paz ao encontro do Pai.


Santos, 1 de outubro de 2025. 

Para Juliana Serzedello (em memória).



quinta-feira, 25 de setembro de 2025

ATO DE CORAGEM

        




        Quando o assunto é cozinhar geralmente não dou muito palpite, já que é uma tarefa que faço sem grandes aptidões. Faço com carinho, capricho e na maior parte das vezes quando invento de preparar algo mais elaborado, acabo tendo sucesso e sempre seguindo à risca uma receita. Confesso entretanto, ser uma atividade que não domino. 

        Por este motivo sempre que me disponho a pilotar o fogão, procuro ser cuidadosa e prestar muita atenção ao que faço. Um momento no qual tenho mais precaução é o instante de usar a panela de pressão.

        Cresci ouvindo falar do perigo que ela representa na cozinha e este receio aliado a casos ocorridos com pessoas conhecidas,  me fazem ficar mais atenta ainda.

        Recentemente conversando com uma amiga, tomei conhecimento de sua desavença com a famosa panela.

        Por motivos a serem esclarecidos o utensílio ainda com pouco uso, resolveu repentinamente fazer um barulho diferente, assustador e na sequência, mostrando que não estava para brincadeiras, começou a eliminar parte de seu conteúdo. 

     Diante daquela situação ameaçadora as duas cozinheiras presentes desligaram rapidamente o fogo e correram para fora da cozinha. Como se fosse cena de um desenho animado ficaram atrás da porta, com as pernas bambas, olhos arregalados e só espiando a fúria da panela.

         É bom que se esclareça que uma das cozinheiras já tinha know how da situação quando presenciou há tempos uma explosão violenta deste equipamento. Portanto, o pavor dela foi instantâneo.

        Após alguns momentos de pura cólera a panela foi se acalmando aos poucos até silenciar, mas somente depois de provocar uma imensa sujeira por todos os lados.

        Provavelmente tal objeto estava estressado e a maneira que encontrou de se vingar foi ter este chilique pondo as duas mulheres em fuga.

        O veredito ainda não foi divulgado, mas graças a Deus não houve consequências mais sérias além da grande sujeira provocada.

        Ao ouvir entre risos este relato, no mesmo instante lembrei-me de outro fato semelhante ocorrido há anos com uma outra amiga.

      Preparando o almoço no fogão que ficava no rancho dos fundos da casa, acabou deixando a tal panela de pressão trabalhando a todo vapor sozinha sobre o fogão. 

        A cobertura do local era de telhas de amianto.

        "De repente, não mais que de repente"* como já disse o poeta Vinícius, ouviu-se em toda a região uma explosão que mais parecia a queda de um meteoro na casa.

        Mais uma vez a mão de Deus permitiu que ninguém estivesse por perto.

        Passado o susto e a gritaria, minha amiga foi pé ante pé até o rancho verificar o que de fato havia acontecido.

        Encontrou um ambiente pós guerra.

        A parte superior do fogão havia afundado até o forno, as grelhas totalmente disformes e a panela destroçada e arreganhada.

        A comida se espalhou por todos os lados.

        Limpando todo o local da sujeira, foi notado que a tampa da panela havia sumido.

        Bastou olhar para cima e ver um rombo enorme nas telhas de amianto que ficavam sobre o fogão.

        A tampa àquelas alturas devia estar orbitando em torno da Terra.

        Tudo arrumado, almoço cancelado e vida que segue.

    No dia seguinte após a "queda do meteoro", eis que a vizinha da casa ao lado surgiu segurando o que restara da tampa da panela de pressão.

        A dita cuja tampa depois de orbitar na atmosfera, havia aterrissado sobre a goiabeira do quintal da casa ao lado.

        Realmente cozinhar utitlizando a panela de pressão constitui-se em ato de coragem.


Santos, 24 de setembro de 2025

Para as amigas Maria Sueli e Maria Lygia, com os agradecimentos pelas risadas ao ouvir os fatos.

* Poema: Soneto de Separação - Vinícius de Moraes..










sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Eu e o cinto de segurança

     





    Não há dúvida quanto à necessidade e importância do uso obrigatório do cinto de segurança durante qualquer deslocamento em veículos sejam, automóveis, ônibus de viagem, transporte escolar, táxis, carros de aplicativos, vans, etc.

    Não discordo de seu uso em momento algum, mas realmente eu e ele temos uma incompatibilidade constante.

    Como tenho pouca altura uso o banco posicionado bem para frente, assim como o encosto do referido banco. Resultado: o cinto passa justamente sobre meu pescoço, fato que incomoda demais. 

    Para sanar este problema passei a usar um tipo de proteção com um pouco de espuma que protege a pele do meu pescoço contra o atrito com o tecido do cinto.

    Mesmo antes do uso deste acessório tornar-se obrigatório eu já fazia uso quando em viagens a passeio ou a trabalho.

    Foi justamente por ocasião de uma dessas situações que ocorreu o primeiro incidente.

    Éramos quatro profissionais e eu ocupava um local no banco traseiro. 

    O carro não era muito novo e era dirigido por sua proprietária. 

    Deslocávamos na chamada Serra de Corumbataí para participarmos de reunião com professores em uma cidade vizinha.

    Foi quando resolvi colocar o cinto de segurança que se encaixou perfeitamente.

    Chegamos ao destino bem em cima do horário marcado para o início dos trabalhos.

    Sendo assim, mal a motorista desligou o veículo e todas suas ocupantes já desceram apressadas.

    Todas não!!!!!

    Eu fiquei presa no carro!

    Não consegui destravar o cinto. 

    Foi quando notei que ele estava enferrujado e provavelmente essa era a causa do problema. 

    Minhas companheiras ao me verem literalmente lutando com o cinto, voltaram para o carro com o objetivo de me ajudarem. 

    Nenhuma tentativa surtia efeito e a estas alturas, as risadas para não dizer gargalhadas, atrapalhavam mais ainda. 

    Tentei escorregar por baixo do cinto, mas não deu certo. 

    Uma amiga ajoelhou-se no chão do carro para ter melhor visão do problema, mas também não teve êxito em me soltar.

    O diretor da escola que de longe via toda a confusão e sabendo a causa, veio em meu auxílio com uma tesoura na mão.

    Por sorte, antes de cortar o cinto, fiz um movimento mais brusco e consegui me libertar.

    Não preciso dizer que na viagem de volta nenhuma das ocupantes do carro se atreveu a colocar o tal cinto de segurança.

    Recentemente fui a São Paulo de ônibus e embarquei sem maiores problemas.

    Antes de começar a viagem resolvi colocar o bendito acessório que realmente é necessário.

    No banco ao meu lado estava sentado um rapaz um pouco acima do peso.

    E foi aí que começou meu sofrimento.

    Por mais que eu tentasse não conseguia encaixar e fechar a fivela do cinto mesmo porque  mal conseguia vê-la já que parte do corpo do rapaz tampava minha visão do local.

    Embora o ar condicionado estivesse relativamente fresco dentro do veículo, eu já estava suando de tanto tentar sem sucesso abotoar o bendito cinto.

    Foi quando ouvi um..CRECK

    Isso deu-me um grande alívio!

    Aquele barulhinho foi como um bálsamo para mim. 

    Recompus-me e já preparava para relaxar quando o companheiro do banco ao lado virou-se para mim e disse:

    - A senhora acabou de soltar meu cinto!

    Olhei para ele incrédula e já rindo muito.

    O tal CRECK que ouvira fora justamente o cinto do rapaz sendo aberto.

    Foi nesse momento que ele se levantou e  pude ver que a ponta que correspondia ao meu acessório estava justamente sob o corpo dele.

    Aproveitei o momento que ele estava em pé para então fechar meu cinto de segurança, fato que ele também fez com o dele assim que se acomodou novamente no banco. 

    Realmente eu e os tais cintos de segurança temos uma visível incompatibilidade.


Santos, 12 de setembro de 2025

Para as companheiras de viagem até Itirapina (SP) e em especial para Lázara (in memoriam) que até se ajoelhou no chão do carro na tentativa de me ajudar.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

sábado, 31 de maio de 2025

DORMINDO NA PRAÇA

    


  


"Prefiro a música porque ela ouve  o meu silêncio e ainda o traduz, sem que eu precise me explicar".

    Li há poucos dias a frase acima cujo autor não consegui identificar, e concordei de imediato. A música fala por nós de uma maneira plena e objetiva.

    Impossível existir alguém que não tenha sido marcado na mente e na alma, por uma música.

    Todos temos nossa trilha sonora da vida!

    Eu por exemplo tenho várias que me trazem desde belas lembranças, até momentos de medo, ou ainda de muita gargalhada e descontração.

    Em minha memória afetiva carrego muita MPB, bossa nova, baladas, boleros, rock and roll, etc, mas nunca fui muito chegada no gênero musical sertanejo. Claro que sempre há uma ou outra música que aprecio e chego a cantarolar, mas com certeza não é o meu estilo preferido. 

    Há pouco liguei a TV e uma dupla sertaneja cantava um sucesso do início dos anos 2000. Impossível não sorrir e lembrar de um fato insólito que vivenciei e que me fez cantarolar essa música.

    Estávamos numa cidade no interior de SP onde ocorreria ao final daquele dia, um baile de formatura. 

    Devidamente hospedadas num hotel no centro e bem próximo ao local das festividades, não nos preocupamos em ver número de táxi (ainda não havia sistema uber e similares) para o retorno que seria durante a madrugada e muito menos anotar o telefone do hotel.

    No horário marcado para o início do baile dirigimo-nos ao clube caminhando calmamente. Afinal eram poucas quadras de distância.

    A festa estava muito animada, com os formandos, amigos e familiares festejando o final de uma jornada de anos de estudos e o próximo início da vida profissional.

    Por volta das 3 horas resolvemos retornar ao hotel pois o cansaço e sono já haviam chegado fortemente.

    Surpresa!!!!!

    A porta de acesso ao hotel estava fechada, muito bem fechada até com cadeados. Olhando pelo vidro da porta não divisávamos ninguém na portaria que se encontrava totalmente âs escuras. 

    Nunca soube até aquele momento de um hotel que fechasse as portas e não ficasse ninguém responsável por atender clientes já hospedados no local e que chegassem no meio da noite.

    Batemos com força na porta mas o silêncio foi a nossa resposta.

    Bem em frente ao hotel havia um jardim com muitos bancos que àquela hora da madrugada estavam absolutamente vazios. 

    Foi quando o sucesso da dupla Bruno e Marrone bateu em nossas lembranças: Será que teríamos que dormir na praça???

    Impossível não cantarolar, entre risadas:

"Seu guarda eu não sou vagabundo

Eu não sou delinquente, sou um cara carente

Eu dormi na praça...."

    Continuamos a bater na porta até que vi em um canto da parede uma pequena anotação com o número do telefone do hotel.

    Foi a nossa salvação. 

    Liguei e claro, demorei a ser fui atendida. 

    Quando já estava desesperançosa e até escolhendo em qual banco terminaria a minha noite, ouvi uma voz sonolenta atendendo o telefonema. 

    O funcionário ainda custou a entender que queríamos entrar em nossos aposentos e nos olhou com expressão incrédula, tipo assim, de onde vieram estas duas a esta hora da madrugada e com roupas de festa?

    Nem nos explicamos porque o sono era grande e já estava quase clareando o dia.

    Por muito pouco não pudemos curtir a mesma experiência de Bruno e Marrone e sermos acordadas por um guarda enquanto dormíamos no banco da praça! Encerraríamos com chave de ouro esta grande noitada.


Santos, 31 de maio de 2025

Obs: Para Carolina, lembrando de seu baile de formatura e para Tutu, que quase foi minha companheira de noitada no banco da praça.






 


quinta-feira, 1 de maio de 2025

DORMINDO COM O INIMIGO

                         
           

         Se você pensou em alguma história de suspense ou terror, errou!

        Nada a ver com assassinos ou fantasmas.

        Foram companheiros de quarto bem incomuns.

        O perigo que poderiam provocar era causarem um grande susto e até uma gritaria em plena madrugada.

        O chalé era muito gracioso e aconchegante. O jardim que o rodeava era bem cuidado, com árvores e flores em quantidade.

        Na janela do quarto uma floreira carregada de gerânios dava um toque especial ao aposento.

        Logo após o pôr do sol ela resolveu fechar as venezianas com receio que algum inseto entrasse voando no aposento.

        Eis que no momento em que fazia isso uma andorinha desavisada e provavelmente com seu GPS desregulado, ao invés de se dirigir para seu ninho em alguma árvore, entrou voando rapidamente dentro do quarto.

        Não havia forro no aposento. O madeiramento do telhado era bem alto, com caibros de aspecto rústico.A ave pousou em um deles e lá se acomodou.

        Aí começou o drama: fazer com que ela saisse novamente pela janela.

        Não surtiram efeitos os barulhos, gestos e lançamentos de objetos na direção da pequena ave.

        Ela fazia acrobacias mil por todo o espaço e às vezes dava até umas rasantes que obrigavam o casal a se abaixar.

        Foi quando ele resolveu jogar o paletó de seu pijama.  A peça subia e caia e a ave continuava impávida, até que...

        Até que o paletó enroscou em um caibro bem alto.

        Aí a situação só se complicou. A andorinha saracoteava pelo quarto enquanto o pijama permanecia pendurado e em uma posição impossível de ser resgatado.

        A estas alturas o sono já dominava o casal que se deu por vencido. Fechou a janela e desistiu de espantar a ave.

        A solução foi se cobrirem até a cabeça para evitarem surpresas em plena madrugada. Adormeceram receosos de acordarem no meio da noite com algum míssil de fezes explodindo bem no rosto.

        Na manhã seguinte acordaram e já se depararam com a avezinha toda lampeira e feliz após ter curtido uma noite diferenciada, revoando pelo espaço aéreo do quarto. Foi só abrir a janela e ela saiu num átimo em busca de seu café da manhã. 

        Ela chegou a ver um sorriso irônico no biquinho da andorinha.

        Em tempo: o paletó do pijama foi posteriormente resgatado.

        Mais recentemente um outro casal também teve uma companhia singular em seu quarto.

        Hospedados em um local bem próximo à natureza, não contavam com um terceiro ser devidamente acomodado no cantinho da parede.

        Na verdade foi visto de soslaio por ela, mas por estar sem óculos considerou que era simplesmente um daqueles objetos que chamamos de peso de porta.

        O tal peso de porta era na verdade um gorducho sapo bem vivo que quietinho aproveitava o aconchego do quarto. 

        Na manhã seguinte foi reconhecido e recebeu a devida carta de despejo do aposento.

        Ainda bem que nos dois casos não houve acidentes e nem gritarias em plena madrugada. 

        Foram companhias bem comportadas.


Santos, 1 de maio de 2025.





sexta-feira, 18 de abril de 2025

CAMINHADA NA SEXTA-FEIRA SANTA

 



            Vamos fazer um passeio de ônibus?

            Recebi este convite irônico nesta Sexta-Feira Santa. Nem precisei responder.

            Por que irônico? Porque partiu de minha irmã que com certeza estava se lembrando, assim com eu já havia feito logo pela manhã, de um desastrado passeio feito neste dia santo, há aproximadamente 6 décadas.

            Vivíamos em Rio Claro no interior paulista e o slogan da administração municipal àquela época estimulava a visita à cidade. 

            Ouvia-se com frequência a frase: Conheça Rio Claro, a cidade que se expande dia a dia.

            Vivia-se um tempo muito diferente dos dias atuais. A Semana Santa era um período onde as diversões e prazeres, principalmente para os cristãos, eram deixados de lado em total respeito ao martírio e morte de Cristo.

            Em nossa casa a televisão e o rádio eram proibidos de serem ligados. Não programávamos passeios, jogos ou qualquer outra diversão que despertasse risos e consequentemente barulhos.

            O respeito pela data sempre foi priorizado e entendíamos isso.

            Em meados dos anos 60 eis que numa tarde de Sexta-Feira Santa o tédio irrompeu-se nas duas irmãs. Os pais dormiam e o irmão mais velho havia saido com amigos.

            Os ponteiros do relógio teimavam em girar demasiadamente lentos e a tarde se arrastava.

            Foi quando uma delas lembrou-se da frase: Conheça Rio Claro, a cidade que se expande dia a dia. 

            De imediato surgiu a ideia de passearmos de ônibus pelas ruas mais distantes de casa e por caminhos desconhecidos e não rotineiros. 

            Sugestão dada e aceita imediatamente.

            Com dinheiro para duas passagens dirigimo-nos até o ponto de õnibus onde havia linhas para vários bairros mais distantes.  Optamos por um que atendia bairros que não conhecíamos, afinal o objetivo era visitar a cidade.

            Acompanhamos curiosas o trajeto feito e que ficava justamente do lado oposto aos caminhos que costumávamos fazer para passeios, para irmos à escola, à igreja, casas de amigos, etc.

            De repente a aventura foi interrompida.

            O motorista parou o ônibus e avisou que ali era o ponto final. Todos teríamos que descer. Quem pretendesse continuar no transporte precisaria pagar nova passagem.

            Não tivemos outra opção a não ser sairmos do ônibus. Estávamos sem dinheiro para pagarmos a volta e o pior, nem sabíamos onde realmente estávamos.

            Resolvemos voltar a pé, única solução viável no momento. 

            Surgiu aí o primeiro fator complicador. Minha orientação espacial sempre foi avariada, para não dizer quase nula, e portanto, não sabia nem para qual lado ficava o centro da cidade. 

            Depois de perguntarmos a alguém e pensarmos um pouco, decidimos o caminho a seguir. 

            Logo após percorridas as primeiras quadras de regresso, eis que o tempo mudou de repente e uma chuva, a princípio leve, mas depois mais forte, começou a cair e assim permaneceu por um bom tempo.

            Quando finalmente avistamos prédios já conhecidos o ânimo voltou e aceleramos os passos.

            Chegamos em casa molhadas dos pés à cabeça e com uma canseira imensa.

            Para evitarmos broncas não contamos sobre o desastrado passeio. Nossos pais vieram a saber disso sómente tempos depois.

            De certa forma conhecemos mais a cidade do que pretendíamos, pois o percurso a pé nos permitiu ver com calma, ruas e avenidas existentes entre a Vila Martins e o inicio do Jardim Floridiana onde estávamos, e o centro da cidade onde morávamos. 

            A caminhada sob chuva de mais de 3 km em plena Sexta-Feira Santa nunca foi esquecida e se depender de mim, também jamais será repetida.


Santos, 18 de abril de 2025 / Sexta-Feira Santa.






segunda-feira, 7 de abril de 2025

TELEVISÃO

 



            Não sei se sou eu que ando exigente demais ou então ranzinza, mas o fato é que os poucos momentos nos quais ligo a TV  em canais abertos ou não, não consigo soltar das mãos o controle remoto. 

          Isto porque em poucos minutos olhando para um canal qualquer já me desinteresso pelo assunto e lá vou eu apertando o botão sem parar, até que vez ou outra algo me prenda a atenção. 

           Como sou cinéfila geralmente acabo optando por um filme apresentado em plataformas de streaming.

            Há pouco liguei o aparelho e a cena me trouxe de imediato a lembrança de meu pai. Vi na tela a figura conhecida de Galvão Bueno. Instintivamente já mudei o canal. Não tenho nada especificamente contra este profissional; apenas me cansei de seus comentários. 

            Tal fato lembrou meu pai pois ele tinha verdadeira antipatia por Galvão. Entretanto, por gostar de assistir futebol pela TV se deparava com um problema já que a maioria dos jogos tinha a apresentação e comentários sob a responsabilidade deste locutor. A solução encontrada pelo sr. Italo, meu pai, foi deixar a TV ligada só com a imagem do jogo e ouvir a transmissão pelo radio.

        Dizia ele que ficava meio conflitante já que o som era num rítmo inflamado, entusiasmado e a imagem na TV trazia cenas bem menos aceleradas. Mesmo assim, segundo ele, valia a pena.

         No meu caso específico fico à procura de filmes interessantes, sejam dramas, comédias ou mesmo documentários. Se na primeira vista já vejo cenas exibindo armas, violência, mortes, etc, já mudo em busca de outro. Já basta a realidade.

            Ultimamente procuro por histórias que me deixem leve, mais esperançosa, que despertem sorrisos ou mesmo algumas lágrimas, mas que tais lágrimas sejam provocadas por momentos onde os bons sentimentos falem mais alto e deem alento. 

            Dentre os filmes que já assisti várias vezes cito dois: 

Cinema Paradiso vi umas três vezes e fiquei emocionada em todas elas. Além da bela história nos traz a música de Ennio Morricone; e Meia Noite em Paris que tem uma apresentação leve, agradável, com belas imagens e fantástica viagem ao passado. 

            Creio que de certa forma o fundo nostálgico que pode ser observado no filme de Woody Allen (Meia Noite em Paris), mostra indiretamente, ou até mesmo diretamente, que o passado foi mais interessante que o presente.

            Porém, e sempre há um porém, atualmente há poucos filmes que ficam em nossas memórias como estes citados acima. A grande maioria visa a comercialização, as bilheterias concorridas, e a chamada sétima arte acaba esquecendo de ser arte.

            Neste contexto todo opto por filmes clássicos, produzidos em décadas passadas, mas que com certeza são atemporais.

            Quanto à TV aberta, raramente me lembro dela.


Santos, 7 de abril de 2025.



domingo, 9 de março de 2025

CONVERSA DE ELEVADOR



            De uns tempos para cá e com frequência maior do que eu desejaria, fico lembrando de um quadro do programa A Praça da Alegria, atualmente chamada A Praça é Nossa, onde a personagem principal era uma senhora idosa e muito surda de nome Bizantina Scatamacchia Pinto.

            A conversa que ela mantinha com Apolônio sempre sentado no banco lendo seu jornal era toda confusa, com muitas trocas de palavras. Devido à surdez ela entendia as falas do amigo completamente trocadas, resultando sempre em frases muito engraçadas.

            Roni Rios interpretava a velha surda e Apolônio era vivido por Viana Junior, que ficava extremamente irritado com as confusões de Bizantina. A cena final mostrava uma interação dela com Manuel da Nóbrega e posteriormente com seu filho Carlos Alberto da Nóbrega. 

            O quadro deixou de ser apresentado após os falecimentos dos dois protagonistas, pois ficou tão marcante que dificilmente outros atores os representariam tão bem.

            E não é que de uns tempos para cá Bizantina frequentemente tem incorporado em mim ou em pessoas próximas causando muita confusão?

            Houve um episódio no qual me senti a própria velha surda.

            Fui agendar consulta médica e ao ser atendida respondi várias questões sobre os dados pessoais para efeito de cadastro. Foi durante a epidemia de Covid e a jovem que me atendia usava uma máscara. Entre nós havia ainda uma placa de plástico transparente.

            Após algumas perguntas eu a ouço indagar:

            - Usa lente de contato?

            Como o exame que eu solicitava na ocasião nada tinha a ver com a visão, antes de responder eu a questionei:

            - Por que você precisa saber se uso lente de contato?

            Ela mal segurando o riso respondeu-me em alto e bom som, quase soletrando:

            - Senhora, eu pedi um telefone de contato!

            Fui a primeira a gargalhar seguida por todos à minha volta que escutaram a conversa.

            Em outra ocasião durante um bate-papo em família falando sobre a atriz Sophia Loren, lembrei-me de seu último filme Rosa e Momo, onde ela aos 86 anos se destacava ainda pela beleza.

            Ato contínuo pronunciei:

            - Ela está inteirona!

            No mesmo instante veio a interrogação de meu irmão:

            - Ela vive em Verona?

            Não precisei responder mesmo porque a risada de todos já demonstrou que a pergunta feita estava totalmente fora do contexto.

            Mais recentemente numa troca de conversas no elevador a Bizantina entrou em ação.

            O equipamento era espaçoso e cabiam até vinte pessoas. 

            Fui uma das últimas a entrar e não tive acesso ao painel dos botões pois uma pessoa bloqueava o caminho. Eu iria ao 5º andar e com o elevador já fechando as portas perguntei rapidamente:

            - O cinco está apertado?

            Imediatamente um idoso que estava atrás de todos dirigiu-se a mim com uma expressão de espanto:

            - Tem que por o cinto?

            Logo na sequência a mulher ao lado dele já questionou querendo saber onde estava o cinto para ela colocar.

            Ainda sem entender a confusão que estava havendo respondi que nunca vira elevador ter cinto de segurança.

            Nesse momento o senhorzinho olhando muito sério para mim e com ares de que estava irritado, deu-me uma bronca:

            - Como nunca viu, se foi a senhora mesma quem falou para por o cinto??

            Tem dias que meu riso é mais frouxo que o normal, mas naquele momento tive que fazer um esforço e me concentrar para não rir pois ele me olhava bem zangado.

            Fui salva pelos demais que ao notarem a troca de cinco por cinto começaram a rir descontraindo o ambiente.

            Para meu azar tal idoso também desceu no 5º andar, dirigiu-se para a mesma sala e ficou sentado próximo a mim. 

            Resultado: o tempo todo tive que olhar para o outro lado e segurar a risada, mas as lágrimas escorriam no rosto. 

            A Bizantina Escatamacchia Pinto saiu do banco da praça, mas vira e mexe ela ressurge em nossas lembranças cantando sua música preferida:

- Ó querida, ó querida, ó queriiiiiiiiida Clementina!!!!


Santos, 09 de março de 2025.





segunda-feira, 3 de março de 2025

AVALIAÇÃO E SEUS DESACERTOS

 


                   
                                          Imagens: Facebook - Grupo Professores Sonhadores


            Há poucos dias vi  uma publicação em rede social de um grupo intitulado Professores Sonhadores cuja legenda era: O aluno mais injustiçado do Brasil.

            Abri o arquivo que estava em forma de reel (vídeo curto) e me surpreendi com o conteúdo. 

          De imediato reportei-me aos tempos de magistério e às experiências bem semelhantes às apresentadas neste reel, cujas imagens estão na abertura deste texto.

            Há duas questões básicas envolvidas no processo avaliatório: o objetivo - o que avaliar e a maneira - como avaliar.

            Há anos já comentei sobre a dificuldade que muitos professores têm no momento de formularem as perguntas nas avaliações. Muitas vezes uma pergunta mal elaborada deixa dúvidas sobre o que realmente se deseja saber.

            No fato citado no reel está óbvio que a criança concluiu assertivamente cada questão apresentada.

            O que deve ter levado o professor a considerá-las erradas foi com certeza ver que as respostas não traziam exatamente as mesmas palavras que ele esperava ler. A interpretação tanto quanto o raciocínio do aluno foram totalmente desconsiderados.

            Até o famoso Calvin, personagem do desenho em quadrinhos criado por Bill Watterson, aproveitou a oportunidade que lhe foi oferecida ao se deparar com a questão formulada por sua professora:

             - O que você sabe sobre os presidentes dos Estados Unidos?

            A resposta bem objetiva do garoto foi:

            - Não sei nada.

            Ele foi absolutamente sincero e correto em sua resposta.

            Outros exemplos similares pude acompanhar na profissão como foi o  caso em que a professora das séries iniciais do Ensino Fundamental, após ensinar sinônimos e antônimos, pediu na prova:

            - Dê o contrário de: bonito, frio, claro e alto.

            A criança respondeu prontamente: otinob, oirf, oralc e otla.

            A professora não teve outra opção a não ser considerar certa pois o modo como formulara a questão havia dado abertura para este tipo de resposta. Posteriormente explicou melhor a pergunta para a classe toda.

            Atuei como intermediadora em um caso hilário e bizarro durante um desentendimento entre pai de aluno e professor.  Era prova de Ciências e após estudos sobre Higiene e Saúde, apareceu na avaliação a seguinte pergunta:

            - Qual a primeira coisa que você deve fazer após usar o vaso sanitário?

            O professor esperava como única resposta possível: Lavar as mãos.

            Aconteceu porém que era uma 7ª série com alunos em plena adolescência. E não é que um dos garotos respondeu que chacoalhava seu pênis?

          O professor ficou tremendamente irritado e considerou a resposta muito desrespeitosa. Além de colocar um grande X vermelho sobre ela,  humilhou e criticou severamente o aluno diante da classe toda que acabou caindo na gargalhada ao saber a resposta dada.

            Pela idade do aluno e seu histórico brincalhão com certeza a resposta foi proposital, mas independente disso, a maneira como foi feita a questão abriu a possibilidade desta afirmação.

              Em casa o rapaz mostrou a prova ao pai e contou sobre a humilhação. Ato contínuo  este pai foi pedir explicações ao professor, reforçando que a resposta estava certa.

            Foi complicado chegar-se a um consenso e tive muita dificuldade em segurar o riso ao me ver naquela insólita situação, onde pai e professor discutiam o que era prioritário: chacoalhar o órgão ou lavar as mãos. O professor acabou por admitir, não sem muito reclamar, que falhou na formulação da frase.  

            A importância sobre o que avaliar deve ter a mesma intensidade e o mesmo cuidado em relação ao como avaliar.

            O objetivo da  prova é um elemento que não pode ser relegado a segundo plano.São relativamente comuns mesmo em concursos públicos questões que nada têm a ver com o real propósito da avaliação. 

            Nunca me esqueço de um fato ocorrido há anos ainda no início de minha carreira, quando um diretor de escola resolveu ele próprio elaborar uma prova para selecionar dentre vários candidatos, qual seria o mais apto para ocupar a função de servente, atual auxiliar de serviços gerais.

            Fez as questões sozinho e aplicou a avaliação. Ao fazer a correção ficou muito chocado (palavra dele) ao verificar que nenhum candidato acertou uma pergunta em especial.

            Entrou na sala dos professores indignado e nos contou o fato. Todos ali presentes ficaram curiosos. Ele então esclareceu que ninguém soube responder quantos quilômetros tinha a ponte Rio-Niterói. 

            A expressão de espanto de todos inclusive a minha, seguida dos olhares disfarçados, foi imediata.

          Nenhum de nós sabia a resposta. Tal ponte havia sido inaugurada há mais de dois anos.

            O rosto da professora de Geografia que estava em pé ao lado do diretor, perdeu a cor no ato. Ficamos todos em silêncio.

         Assim que ele se retirou da sala a risada foi geral, seguida pela busca imediata da resposta, afinal ele poderia voltar e nos questionar.

            Qual a importância de saber a quilometragem de tal ponte para exercer a função de servente escolar numa pequena cidade do interior paulista? Serviria apenas e tão somente para uma análise insignificante da cultura geral de cada um. Com certeza nenhum candidato havia passado por ela e creio que nem tinham a menor intenção de fazê-lo.

             Portanto devemos ter sempre em mente o que é realmente significativo avaliar, bem como, o modo de proceder a este questionamento de tal forma que não deixe dúvidas a quem for submetido a ele.


Santos, 03 de março de 2025. (segunda-feira de carnaval).

Nota: A quem possa interessar: a ponte Rio-Niterói tem 13,29 km de extensão e foi inaugurada em 1974. Seu vão central tem 300 m de comprimento e 72 m de altura.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

CARNAVAIS D'ANTANHO



        

        
        Já não gosto de carnaval com a mesma intensidade que gostei na infância e juventude. Muitos que já viveram seis ou mais décadas também não o apreciam tanto.
        Ouvindo a mídia falar sobre esta festa popular, vendo fantasias expostas nas lojas e escutando músicas carnavalescas, o baú das boas lembranças se abre e um verdadeiro desfile de fatos vêm em minha mente.
        A recordação mais antiga que tenho é uma fantasia de holandesa que usei em um carnaval nos meus 4 ou 5 anos. O chapéu típico não parava em minha cabeça.
        Os pensamentos seguintes já trazem a figura de meu avô paterno, Adolpho.            Ele frequentava o Grupo Ginástico Rio-clarense, clube social da cidade.
        Nas matinês de carnaval levava os netos mais velhos para brincarem no salão que ainda funcionava na esquina da avenida 3 com rua 2.
        Também nos comprava os inesquecíveis tubos dourados de lança-perfumes juntamente com pacotes de confete e os rolinhos de serpentina. 
        Infelizmente o mau uso do lança-perfume por parte dos adultos, acabou provocando seu banimento.
        Avô Adolpho não entrava no salão e de longe ficava observando nossa alegria. Soube anos mais tarde que ele gostava muito dos bailes quando era solteiro, mas depois do casamento nunca mais foi. No carnaval divertia-se vendo a alegria dos netos.
        À noite havia o chamado corso que era o desfile de carros alegóricos e das escolas de samba.  
        Nessas ocasiôes eram meus pais que entravam em cena, nos levando para assistir.
        Minha mãe, caprichosa que era, costurava sacolinha de tule para mim e meu irmão colocarmos confetes e serpentinas e jogarmos durante o corso. E lá íamos nós empolgados e carregando a tal sacolinha cheia.
        O desfile era na região central da cidade e costumávamos ficar na esquina da rua 3 com avenida 1. Isso era bom para nós crianças pois havia neste local uma casa com jardim e uma muretinha com gradil. Ficávamos em pé nesta muretinha e assim tínhamos uma visão plena do desfile.
        Particularmente o que mais me atraia a atenção eram os carros alegóricos dos clubes, sempre muito iluminados, enfeitados, com moças bonitas fantasiadas e músicas bem alegres.
        Voltávamos para casa com a sacolinha de tule vazia, mas com o coração repleto de alegria.
        Havia próximo de casa uma loja que alugava vestidos de noiva e aí morava uma amiga, Lucinda, sobrinha dos proprietários. Nesta época de carnaval a loja confeccionava adereços para as escolas de samba.
        Eu, já na pré-adolescência, fui muitas vezes ajudar neste trabalho que na verdade para mim era muito prazeroso. Montávamos os chapéus com enfeites, as coroas, colares, etc.
        Certa ocasião a dona da loja, dona Rizolina, ao saber que eu não iria nas matinês naquele ano por problemas familiares, fez às pressas uma fantasia para que eu pudesse acompanhar sua sobrinha. Lá fomos nós, Lucinda de Rainha da Lua e eu de Colombina. Nos levaram até a um estúdio fotográfico para registrar esse momento. Acho que dona Rizolina nunca soube o quanto fez minha mãe feliz com este gesto.
        Com o tempo isso foi se perdendo, assim como as idas nas matinês e a companhia dos pais para ver o corso carnavalesco. 
        Como é imperativo à vida, vieram as mudanças nesta festa e em nós mesmos.
        As antigas marchinhas deram lugar a diferentes rítmos de acordo com a preferência dos jovens de hoje; o carnaval de rua sofisticou-se e hoje é um verdadeiro show de riqueza e cores, mas que de certa forma afastou o povo pois tudo isso tem um custo que boa parte da população não pode assumir.
        Ainda restam os alegres blocos formados pelos bairros, por clubes ou entidades, que dão voz e vez a todos.
        Apesar de eu não ter mais grande atração pelo carnaval, as marchinhas antigas, ah...essas sim, estão guardadas para sempre na memória e cantaroladas nestes dias de festas carnavalescas.
        Bom carnaval ou bom descanso a todos!


Santos, 28 de fevereiro de 2025 (sexta-feira de carnaval)
 




sábado, 22 de fevereiro de 2025

Cada música, uma lembrança

    



       Tenho o hábito de aproveitar o tempo livre ouvindo música. Fico quieta no quarto curtindo minhas músicas preferidas, acompanhando passo a passo as letras e muitas vezes cantarolando junto.

    Fiz uma extensa playlist no Spotify com músicas de minha preferência, nacionais ou estrangeiras e sem nenhuma preocupação cronológica.

    Recentemente dei-me conta que cada composição traz de imediato ao ouvir os primeiros acordes, uma lembrança específica que vivi ou presenciei, representando momentos felizes e outros nem tanto.

    Resolvi então traçar este paralelo entre as músicas e minha trajetória de vida.

1. Que será será - Doris Day. Não há como não lembrar de minha mãe que assistiu ao filme com este tema musical nos anos 50 e sempre comentava sobre a história. Passei a ser fã da obra mesmo porque a melodia é muito cativante e me transporta diretamente para a infância.

2. Moon River - Audrey Hepburn - No filme Bonequinha de Luxo a cena na qual a atriz canta sentada na janela de seu apartamento, ao som de seu violão, me encantou desde sempre. Já o assisti umas três vezes.

3. Cinema Paradiso - tema do filme de mesmo nome com orquestra de Enio Morricone. A melodia linda me transporta para outras épocas. Lembro de uma maquininha comprada por meu pai onde ele colocava carretéis com desenhos sequenciais e ao virar uma manivela tais desenhos passavam a ter movimentos. Era o nosso cineminha infantil. Chegamos a projetar estes filminhos em um muro branco que havia em uma residência na avenida 10 entre ruas 2 e 3. A criançada da região se reuniu ali para assistir, sentada na calçada mesmo. 

4. Luiza - Tom Jobim. Impossível ouvir esta música sem ficar visualizando mentalmente a Luíza de minha família, com toda sua graça, juventude e beleza.

5. New York, New York - Frank Sinatra. Esta canção e sua interpretação na voz de Sinatra, dispensam qualquer comentário. A primeira imagem que me vem à mente é do Prof. Paulo Landim falecido recentemente. Ele dublou-a no palco de uma escola durante apresentações feitas em um período de greve de quase todo o funcionalismo público estadual.  Estava caracterizado como o próprio Sinatra e foi imensamente aplaudido.

6. Hey Jude - Paul McCartney. Novamente minha mãe entra em meus pensamentos. Sempre gostei muito dessa melodia e a ouvia com frequência, mas tinha que ouví-la baixinho pois minha mãe sentia angústia ao escutá-la. Dizia que era uma música sem fim, que nunca terminava.

7. Summertime - Ella Fitzgerald, Louis Armstrong. Outra delícia de ouvir. Apesar de seu ritmo lento, ela me traz na memória uma cena de desenho animado da TV. É quando o Pica Pau se veste de mulher e para provocar o leão marinho faz uma dança sensual ao som de Summertime.

8. Besame Mucho - Orquestra de Ray Conniff. Ouvi-a pela primeira vez na casa de uma amiga do antigo curso primário, Luíza Cristina Camargo. Fiquei maravilhada com o som e com o ritmo. Era um disco Long Play, que chamávamos na época de LP, que eu ainda não conhecia.

9. Céu de Santo Amaro - Caetano Veloso e Flavio Venturini. Que delícia ouvir esta obra. A melodia de Bach depois de 200 anos se encaixou perfeitamente na letra composta por Venturini. Ouvindo-a me transporto ao céu de Rio Claro, minha cidade natal. À noite durante a infância, com menos iluminação que atualmente, ainda podia se ver as milhares de estrelas cintilando e durante o dia o azul  dominava e ainda domina o firmamento.

10. Carta ao Tom 74 - Vinícius de Moraes e Toquinho. A suavidade das letras de Vinícius são verdadeiros poemas. Ouço e me coloco no lugar do cantor sentindo toda a nostalgia que ele cita pois inevitavelmente as mudanças chegam levando embora pedaços de nossa história.

11. Autumn Leaves - Eric Clapton. Essa melodia também gosto muito na voz de Nat King Cole. O outono soa como despedida, mas que valoriza ainda cada momento presente. Usei-a como fundo musical numa crônica escrita por Rubem Alves, O Amor Não Envelhece.

12. Deixa a Vida me Levar - Zeca Pagodinho. Descontração sempre é bem-vinda. Essa alegre música me traz de imediato o nome de Carolina, que nos seus vinte e poucos anos cantarolava feliz essa música que nos deixa mais leves diante da realidade da vida.

13. Fortissimo - Rita Pavone. As músicas italianas sempre estiveram em minhas preferências, principalmente as românticas dos anos 60. Essa em especial me lembra na verdade outra gravada por Rita, a Datemi un Martello. No ano de 1964 a cantora se apresentou no Brasil pela primeira vez e entre outras músicas, cantou alegremente a Datemi un Martello. No dia seguinte ao da transmissão do show na televisão, ouvi a conversa entre um vizinho, sr. Euclides, e meus pais. Estavam chocados com o tipo de música e a maneira como ela estava vestida. Eu nos meus 12 anos vibrei com a apresentação dela, mas nem me atrevi a demonstrar isso, afinal naqueles tempos criança não entrava em conversa de adultos.

14. Je t'aime Ma Non Plus - Anthony Ventura. Essa música lançada em 1969 estourou no mundo todo. Era super moderna para a época e aqui no Brasil, em plena ditadura militar, assim que o sucesso se espalhou o governo a censurou e ela foi proibida de tocar na mídia toda.  Estávamos no último ano do Ensino Médio, Curso de Magistério, e no intervalo das aulas o Grêmio Estudantil (entidade que representava o corpo discente) que era presidido por um aluno (Luiz Carlos), colocava músicas para alegrar o ambiente escolar. Num certo dia estávamos na sala do Grêmio quando o presidente colocou para tocar justamente Je t'aime, que àquela altura já estava proibida. Lembro-me da diretora da escola vir correndo e entrar desesperada na sala gritando com o rapaz para que parasse a música. O medo das represálias por parte do governo era imenso.

    Enquanto escrevo estas palavras o Spotify está tocando a playlist. 

    Citei apenas uma pequeníssima parte da relação.

    A playlist completa totaliza 8h de músicas que contam, cada uma à sua moda, um pouquinho de minha história.

    Creio que todos nós revivemos momentos marcantes de nossa trajetória ouvindo as músicas de ontem, de hoje e de sempre, pois músicas de qualidade são atemporais.


Santos, 22 de fevereiro de 2025.