sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

ADOLPHO CERRI




Recentemente ao relembrar antigos carnavais, resgatei de imediato a figura de Adolpho, meu avô paterno, intimamente associado a estas festas na minha infância.
Com certeza foi uma pessoa ímpar.
A primeira impressão que sua figura despertava, era de um certo temor em função de seu tamanho, pois era bem alto e seu sobrepeso era evidente.  Eu, que nunca fui grande, sentia-me menor ainda a seu lado.
Entretanto, a despeito deste temor inicial, hoje chego a pensar que aquele enorme físico era necessário para comportar tanta bondade e abnegação.
Talvez pela própria educação recebida, não extravasava seus sentimentos distribuindo beijos e abraços, nem mesmo às crianças. Era bem contido neste aspecto.
Essa dificuldade em demonstrar fisicamente suas emoções passava quase desapercebida,  já que seu olhar azulado transmitia clara e abertamente, o que lhe ia na alma.
Era um olhar franco, puro, carregado de carinho e ternura.
Não sei se era impressão minha, mas sentia quando criança, que recebia dele uma atenção especial dentre os netos. Talvez porque fosse a única menina, já que minha irmã nasceu anos depois.  Chamava-me às vezes de Migila;  nunca soube de onde veio este apelido e nem o por quê.
Totalmente desprovido de ambição e vaidade, muitas vezes deixava a esposa tremendamente irritada com a displicência ao se vestir para sair.   Ele realmente "não estava nem aí"  para o que os outros pudessem pensar.
Queria mesmo era se sentir confortável, e assim procedia.
Aos domingos pela manhã, após a missa, costumava tocar sua flauta transversal.  Era de cor negra e ficava guardada num elegante estojo forrado com feltro vermelho.
Já não me recordo se ele tocava bem, mas a cena dele sentado na cama, com os netos à sua volta, enquanto montava com carinho o instrumento, ficou bem gravada na memória.
Como sempre acontece com pessoas de boa índole, sua bondade e total falta de malícia, foram exploradas por outros, mas nem nestas ocasiões ele teve comportamento agressivo.
Simplesmente deixava para lá, e tocava a vida como se nada e ninguém o tivessem prejudicado.
Essa sua benevolência não era compreendida e muito menos aceita por minha avó, Maria Luíza, que com seu temperamento forte, ficava indignada quando amigos e até mesmo parentes se aproveitavam da situação.
O mais incrível é que ele não se abalava com as broncas que dela levava; cruzava as mãos nas costas, logo abaixo da cintura, num gesto característico seu, e saia de perto no maior sossego, deixando-a ainda mais irritada.
Seu jeito simples e sossegado era sua marca registrada.
Uma cena diária que muito me divertia, era vê-lo ler jornais.
Lembro-me bem de suas leituras do jornal O Estado de São Paulo, na loja de meus pais.
Desmontava o jornal todinho à procura dos assuntos que lhe interessavam. Depois, para desespero de meu pai que era extremamente organizado, ele dobrava as páginas de qualquer jeito, à sua maneira, e o jornal ficava lá, todo amarrotado.
E lá ia embora o Adolpho, tranquilamente, enquanto seu filho visivelmente alterado, mas sem dizer uma palavra, num total respeito,  remontava página por página todo o Estadão.
Adolpho nem se dava conta disso, ou se dava, não ligava a mínima.
Realmente um homem bom no sentido exato da palavra.
Ficou muito abalado com a perda da esposa.  
Não aguentou sua ausência e poucos meses depois, foi ao seu encontro.
Como bem disse Rubem Alves - "Recordar é visitar de novo aquilo que o coração guardou".
E meu coração só guardou coisas boas deste avô!
Onde quer que esteja, com certeza está em paz e tocando sua flauta.
Um dia esta Migila lhe encontrará, vô Adolpho.
Até lá!

Santos, 20 de fevereiro de 2015 


Ao avô Adolpho, in memoriam!


2 comentários:

  1. Linda crônica, Ligia, carregada de ternura e emoção.

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  2. Vô Adolpho foi mesmo muito marcante em minha vida. Obrigada Terezinha pela visita ao blog e pelo comentário. Abraços.

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