quarta-feira, 7 de outubro de 2020

TEMPOS DE CRIANÇA


 

Após longos anos de estrada percorrida nesta vida terrena é muito gratificante pararmos um pouco o relógio do tempo e olharmos, nem que seja por alguns minutos, todo o caminho já percorrido.

Da infância à fase adulta passamos por experiências das mais variadas possíveis.

Obviamente haverá muitas lembranças que nos machucaram, mas aí entra neste instante, nossa capacidade de sublimarmos tais fatos e nos atermos somente àqueles que fazem brotar instantaneamente um sorriso na face.

Quando me  proponho a fazer tal exercício meus pensamentos mais demorados correspondem à segunda infância e juventude.  Creio que isto deva se passar também com a maior parte das pessoas.

É inegável que a vida nestas faixas etárias, quando estamos ainda de certa forma descompromissados com nossa função e participação na sociedade como um todo, tudo se compare à conhecida expressão "mar de rosas".  Talvez por isso mesmo permitimos que nossa alma sonhe, e sonhe alto, dando-nos aquela vontade enorme de abraçar o mundo.

Quem já não teve ou ainda tem esta vontade?

As lembranças que trago da infância me são muito caras, a despeito de ainda crianças, faixa dos 7 e 8 anos, eu e meu irmão já trabalharmos várias horas por dia na papelaria de meus pais com obrigações e cumprimento de tarefas.

A memória guarda com muito carinho as brincadeiras com irmão, primos e outras crianças, tanto nas ruas quando o asfalto ainda não havia sufocado as pedras do calçamento, como nas dependências do armazém e fábricas de meu avô e tios-avós. 

Num instante me vejo escalando juntamente com mais crianças, sacas e sacas de açúcar cristal empilhadas num depósito escuro na refinação de açúcar, onde entrávamos escondidos dos adultos.

Era uma delícia furarmos os cantinhos do tecido e comermos o açúcar que escorria pelos buraquinhos feitos.  Além de saborearmos o doce, havia também a emoção da aventura pois fazíamos isso sempre de olho na porta do depósito com receio que alguém nos flagrasse. Quando isso acontecia era uma correria só.  Cada criança corria para um lado com o coração aos pulos.

Outra aventura prazerosa era invadirmos a adega que ficava no quintal no centro da fábrica de macarrão.  Impossível esquecer a emoção temperada pelo medo e pela curiosidade ao descermos os degraus cheios de limbo verde, e entrarmos num ambiente na semiobscuridade sentindo teias de aranhas enroscando nos braços e rosto. A sensação da aventura suplantava qualquer receio maior.

No fundo da adega víamos garrafas e mais garrafas de vinhos que eram destinados ao consumo da família. Nunca mexemos nelas pois sabíamos até onde nosso atrevimento poderia chegar.  Esta brincadeira teve um final súbito pois numa das invasões fomos vistos por tia Fiorina, que da janela do salão do sobrado deu o grito de alerta aos funcionários e aí a correria foi imediata. Lembro-me que ficamos sem aparecer em casa por algumas horas até que a bronca dos adultos amenizasse.

Não há como esquecer a delícia que era na fábrica de macarrão, ser colocada sentadinha sobre a prateleira mais baixa dos carrinhos que possuíam vários andares de varais destinados a pendurar espaguetes recém preparados. Tais carrinhos tinham rodinhas e eram levados por funcionários (Gino e Zanardi) até a sala de secagem onde havia um enorme ventilador que tomava toda a parede do ambiente.  Como eu era a menor da turma e única menina, tinha o privilégio desta brincadeira. O carrinho era então empurrado em alta velocidade por um longo corredor que levava até a sala do secador e eu ria muito neste trajeto, sentido as pontas dos espaguetes úmidos batendo em meu rosto. Óbvio que essa brincadeira também não chegava aos ouvidos de meu avô e principalmente de meu  tio-avô  Casemiro (Pipe) que era muito sério e sisudo nos causando certo receio e distanciamento dele. Creio que fosse amoroso como meu avô, mas naqueles tempos as crianças não tinham a liberdade que hoje possuem no meio dos adultos.

Na esquina da fábrica, bem no canto da avenida 8 com rua 3, meu avô administrava o armazém da família onde sempre havia encostada à porta, uma caixa de madeira com bacalhaus secos. Uma de minhas traquinices era ao passar por ali, beliscar pedações destes peixes e sair curtindo o gostinho de sal na boca, enquanto meu avô entre bravo e sorridente, me dizia:  "Migila, não estrague o produto!"

Nunca soube o motivo dele às vezes se referir a mim com este apelido.

Interessante que depois desta fase passei a não gostar de peixes. Apenas recentemente comecei a aceitá-los no cardápio.

O portão da garagem da fábrica era de madeira grossa mas cheia de vãos pelos quais podíamos ver as pessoas passando pelas duas calçadas da avenida 8.

Isso era um convite para outra arte!  Fazermos canudinhos de papel na forma de cone, fechados numa extremidade e abertos na outra. Colocávamos tais canudinhos dentro de talo oco de mamona e ficávamos à espreita de uma vítima que passasse na calçada mas do outro lado, pois caso contrário seríamos imediatamente identificados.  Tínhamos portanto que dar um forte sopro. Ao sentir a batida do canudo em seu corpo a pessoa parava, se apalpava, olhava em volta e nada via, enquanto a criançada segurava a risada por trás do portão.

Essas e muitas outras lembranças da infância me fazem sorrir sempre ao revivê-las como neste momento.

Meus bons tempos de criança!

Sou obrigada a contrariar Ataulfo Alves: "Eu era feliz e sabia!"*




Santos, 07 de outubro de 2020

Aos companheiros destas aventuras da infância na fábrica da família: Edo, Chico, Benito (in memoriam), Arnaldo e Cláudio Emílio.



* Meus tempos de criança - Ataulfo Alves



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